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Luzes da cidade

A farsa do malandro digital

Há a defesa perversa do direito de destruir a privacidade alheia em nome da liberdade de expressão

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Um executivo poderoso e discreto, um escort gay, uma chantagem e um popular website criado para publicar qualquer porcaria para atrair tráfego. A combinação se tornou explosiva na sexta-feira, quando o site Gawker retirou do ar uma postagem (não dá para dignificar chamando de reportagem) sobre o irmão do ex-secretário do Tesouro de Barack Obama. Curiosamente, o site conferiu anonimato ao escort chantagista embora, como sói acontecer na era digital, sua identidade já esteja em ampla circulação. Os detalhes da intriga sexual pouco importam aqui, mas sim a censura tardia determinada por executivos - não editores - e o que o triste espetáculo mostra sobre a liberdade de expressão sem responsabilidades na era digital.

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A liberação das biografias não autorizadas pelo Supremo Tribunal foi saudada como uma vitória da liberdade de expressão no Brasil. É mais do que isto. Leva em consideração o fato de que a lei já protege as pessoas de difamação; o fato de que a indústria editorial não é suicida e que adultos encarregados de decisões, amparados em departamentos jurídicos, hão de filtrar a descrição não lisonjeira do puro apedrejamento sem vínculo com a realidade.

Se insistimos em pertencer ao time civilização, há que distinguir entre a livre expressão que incomoda e a selvageria para intimidar e faturar. Não há a menor justificativa jornalística, cívica ou criminal para expor a privacidade de pessoas que vivem de maneira incômoda para os redatores do Gawker. Um senador que tenta criminalizar o sexo gay, enquanto contrata escorts masculinos, pode ser exposto se explorar alguém. Já um cidadão privado deve poder transar com um boneco inflável ou um adulto do mesmo sexo sem que a patrulha do Gawker exponha suas duas filhas pequenas ao assédio cruel na escola.

Antes de seu patrão Nick Denton censurar o post, o untuoso editor-chefe do site tuitou: “Se tiver a chance, o Gawker vai sempre reportar executivos casados de principais empresas de mídia traindo suas mulheres”. Como uma jornalista que começou a estagiar sob a ditadura, não contenho meu escárnio. Estamos diante de stalinistas digitais, moralistas vitorianos que tentam disfarçar seu absoluto desprezo pelo direito à privacidade e um difuso ressentimento contra quem não reflete sua triste imagem no espelho com uma santarrona indignação pela invasão de privacidade praticada pelo Estado. 

O leitor poderá ficar surpreso ao saber que alguns paladinos defensores de Edward Snowden em sua denúncia contra a inaceitável espionagem da NSA americana saem em defesa do Gawker. De fato, John Cook, contratado pelo bilionário Pierre Omidyar para o website The Intercept, fundado por Glenn Greenwald, voltou aos braços do Gawker e protestou veementemente contra a intervenção do lado corporativo da empresa na decisão de censurar o post original dizendo, o autor do post fez exatamente o que os editores do Gawker pedem.

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Nenhum jornalista será a favor de diretores comerciais decidirem o que pode ser publicado. Mas notem a defesa perversa do direito de destruir a privacidade alheia em nome da liberdade de expressão.

Esta contorção que lembra um pretzel - aquele biscoito de rosca vendido em carrocinhas em Nova York -, pode ser exemplificada por Glenn Greenwald, o bravo ganhador do Pulitzer como parte do time que revelou ao mundo os documentos de Edward Snowden sobre a espionagem inconstitucional. Greenwald vive no Rio de Janeiro numa bolha de indiferença à violência e inconstitucionalidade que o cercam. Posa para selfies com Luciana Genro, cuja plataforma partidária provavelmente impediria seu patrão Omidyar de financiar sua indignação. Greenwald condenou justificadamente o post “vil” e homofóbico original para, em seguida, sair em defesa dos redatores da Gawker. Como se o macarthismo sexual que praticam contra várias outras figuras fosse jornalismo merecedor da proteção da Primeira Emenda da Constituição. 

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