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A fala do inimigo

Há 40 anos nascia o ‘Jornal da República’, bonito sonho que não durou 6 meses

Por Humberto Werneck
Atualização:

Neste 27 de agosto faz 40 anos que, aguardado com muita expectativa, atracou nas bancas o Jornal da República, canoa que não tardaria a se tornar – ou a se revelar – irremediavelmente furada, e que iria a pique em menos de seis meses. Da tripulação fazia parte este cronista – o qual, na saudável temeridade de seus 30 e poucos anos, não só se jogou de cabeça na aventura como dela jamais se arrependeu por completo. E olha que, para estar a bordo daquela precária embarcação, deixei para trás, pelo mesmo salário, uma posição confortável na redação da Veja, onde era muito bom trabalhar.

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Ainda resisti quando veio, do Roberto Pompeu de Toledo, um primeiro convite, que recusei por me faltar o indispensável apetite para encarar distantes pautas de uma editoria de Internacional. Mas veio também, irrecusável, uma proposta do Nirlando Beirão, amigo e ex-chefe na Veja, para trabalhar com ele na editoria de Cultura e Esporte. 

Habituado a comodidades de que então se desfrutava sob a árvore da Editora Abril, hoje tristemente desfolhada, fui cair no ambiente espartano de um 11.º andar no centro da cidade. Transplante que não cheguei a lamentar – pelo contrário, gostei da ideia de retornar a uma região de que tenho tão boas lembranças, as imediações da antiga sede do Estadão, na Rua Major Quedinho, 28, onde, em maio de 1970, recém-chegado de Minas, batalhei e conquistei, no Jornal da Tarde, o meu primeiro emprego paulistano. 

Repetiria a dose a partir de 1983, quando, encerrada uma segunda encarnação na Veja, fui trabalhar na redação da revista que, nostálgico de tempos melhores, chamei depois de IstoEra, instalada exatamente naquele 11.º andar onde surgiu e se apagou o Jornal da República.  Sempre achei reconfortante, terminado um fechamento, baixar à rua num lugar onde a vida me parecesse circular com mais calor e colorido, em contraste com o confinamento em pontos remotos da cidade, nos quais o movimento predominante, nas 24 horas do dia, costuma ser o de ônibus e caminhões a caminho de alguma rodovia. Uma vez mais, devo estar enganado, pois a tendência, que não é de hoje, aponta para o lado oposto – mas sigo achando que jornais e revistas refletiriam com mais fidelidade a vida quando feitos no bulício e trepidação de um centro de cidade.

Mas voltemos àquele 11.º andar da Rua da Consolação, 293, um espaço estreito e longo no qual, se bem me lembro, não havia o conforto mínimo de uma garrafa térmica de café. Não me fazia falta. Era esplêndido estar ali na companhia de craques do jornalismo como o Roberto Pompeu, o Nirlando, o Claudio Abramo, o Ricardo Kotscho, o Paulo Sotero, o Aloisio Biondi, o Clovis Rossi, o Paulo Markun e tantos outros que não há como citar aqui, sob o comando do Mino Carta, dando largada a um jornal que se propunha ser independente no momento em que a ditadura do golpe de 64 dava mostras de entrar num processo de esfarinhamento sob controle.

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No dia seguinte ao da chegada do jornal às bancas, aliás, veio a anistia, não aquela com que sonhávamos, que não pusesse no mesmo saco torturados e torturadores, mas, em todo caso, anistia, suficiente para trazer de volta os exilados.

No alto do expediente do jornal, como diretor-presidente, tínhamos ninguém menos que Raymundo Faoro, que no clássico Os Donos do Poder esmiuçara a formação de nossas classes dominantes. E tudo parecia ir muitíssimo bem naquela segunda-feira, 27 de agosto de 1979, em que em poucas horas se esgotaram os 72 mil exemplares da edição inaugural do Jornal da República, com 28 páginas e fartura de publicidade.

Começava a se formar um time de colaboradores de que fariam parte, entre outros, Hélio Pellegrino, Leandro Konder, Moacyr Werneck de Castro, Franklin de Oliveira, Henfil, Plínio Marcos. Lembro-me de que o n.º 1 trouxe, sem especial destaque, artigo de um líder sindical que ainda não incorporara o apelido ao nome, e que seis meses depois formalizaria a existência de um promissor partido político. 

Tudo parecia ir bem, e no entanto... Não sou eu quem poderá contar o que se passou nas coxias para que já em setembro Domingos Alzugaray, dono da Editora Três, batesse em retirada, deixando o sócio Mino Carta no topo de uma escada que já não existia. 

Eu era, naquele momento, editor de Cultura e Esporte, substituindo o Nirlando, que o Mino alçara a mais altas cavalariças, e estava às voltas com o desafio de encher, com uma brava e diminuta equipe – Carmen Cagno, Tonico Duarte, Dina Amendola, Osmar Freitas Jr. –, e meios cada vez mais insuficientes, um latifúndio de papel em branco, correspondente, se bem me lembro, a uma boa metade das habituais 16 páginas do Jornal da República

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Era um dos editores, mas não chegavam a mim senão fiapos de informação sobre investidas de Mino Carta em busca de novos sócios ou, em desespero de causa, compradores para a publicação. Só no final de dezembro a tropa exausta soube que a nossa canoinha fazia água.

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Uma segunda acepção da palavra “fechamento”, assustadora, passou a predominar em nossas preocupações. Na Rua da Consolação, tornou-se para nós indispensável o exercício de um tanto de molecagem, molecagem benigna, como contrapeso para a derrocada que se avizinhava. Imbatível nessa modalidade, o repórter Chico Malfitani, nas semanas finais, deu de subir na mesa e dali cocoricar, de cócoras, desatando um coro arrematado por muita gargalhada: “O galinho cantou / e o jornal não fechou!”. 

Nesse clima entrou janeiro, e, por mais que o galinho cantasse, cada um de nós tratou de ir atrás de um escaler, de um colete salva-vidas. É hoje! Não foi. Da semana não passa... – e assim chegamos ao 21 de janeiro em que pela última vez se ouviu ali o matraquear de nossas máquinas de escrever. 

Houve um quê de ironia amarga na derradeira tarefa que me tocou naquela redação, em meio a uma unanimidade de expressões fatigadas, lágrimas discretas e, lá pelas tantas, uma circulação desinibida de cerveja. 

Era, como no dia da estreia, uma segunda-feira, e a última – em mais de um sentido – página do esquálido, exangue Jornal da República, a de n.º 12, sob meus cuidados, seria dedicada a um acontecimento em que muitos já não acreditavam: a tão sonhada e mil vezes adiada vinda de Frank Sinatra ao Rio de Janeiro. Estava bom demais para ser só alegria.

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