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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A dor da Mãe

O momento que Michelangelo retratou Maria é dilacerante: com o filho morto no colo

Atualização:

Entre os 20 e os 40 anos, quase todos nós enterramos nossos avós. Entre os cinquenta e setenta, assumimos o doloroso dever de acompanhar o funeral de nossos pais. A partir de então, frequentamos exéquias de amigos com a crescente desconfiança de que a fila anda rápido e que nossa vez se aproxima. Isso incomoda, porém, como advertiu o rei Cláudio ao enteado Hamlet, faz parte do ciclo da vida: “Manter-se em obstinado luto é teimosia de ímpia obstinação”.

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Talvez fosse mais fácil para Cláudio sair do pesar, afinal, ele era o assassino e o beneficiado da morte do irmão. Há um fato maior do que o fim da vida de avós ou pais: quando a mãe enterra um filho. Como escreveu Chico Buarque na dilacerante canção Pedaço de Mim: A saudade é o revés de um parto; é arrumar o quarto do filho que já morreu.

Nossa Senhora das Dores é a materialização do instante em que a escala de dor chega ao zênite. Pode ser a jovem Maria de Michelangelo ou a angustiada e dramática Maria do filme de Mel Gibson (A Paixão de Cristo, 2004) que, com suas vestes, limpa o sangue da flagelação. Dezenas de autores criaram música para os versos medievais: “Stabat Mater Dolorosa, Juxta Crucem Lacrimosa” (de pé a mãe dolorosa, junto à cruz, lacrimosa). O mais famoso foi Pergolesi, no entanto o tema inspirou o padre Vivaldi, Domenico e Alessandro Scarlatti, Haydn, Schubert e até Poulenc. Eram compositores católicos, claro, mas todos tiveram mãe e a cena só não comove um “filho de chocadeira”.

A Pietá, Nossa Senhora das Dores, Virgem da Soledade, Maria das Lágrimas: a Mater Dolorosa foi denominada de muitas maneiras. Aleijadinho a faz atravessada por sete espadas, como vemos no Museu de Arte Sacra de São Paulo. O velho Simeão havia dito (Lc 2, 35), ao ver o bebê, que uma dor aguda trespassaria o coração daquela jovem mãe. Uma espada ou sete (incluem-se aqui as dores de fugir para o Egito, perder-se do Filho aos 12 anos, a flagelação de Jesus, etc.): a imagem é pungente. A maior de todas é o momento que Michelangelo a retratou: com o Filho morto ao colo. Uma maternidade fúnebre acontece: ela é mãe e, como diz a tradição teológica, gerou quem a criou. A mãe agora vê a Vida anunciada (como caminho e verdade) sem sopro vital. O momento pessoalmente terrível e teologicamente dilacerante: quem prometeu salvar todos naquele fim de tarde de véspera de Páscoa estava ali, inerte, ensanguentado, aparentemente sem nenhum poder. Exigia-se de Maria duplo esforço: suportar a dor destrutiva de ter um filho de 33 anos assassinado, o Jesus que ela recebera com surpresa naquele fim de tarde com o anúncio do Arcanjo Gabriel; e a imensa dor divina de ver o Salvador desamparado, sem força, morto, inerte e questionando, com seu cadáver, o poder das promessas feitas. A alma da mãe e a personalidade cristã de Maria estavam sofrendo. A Virgem das Dores cuja festa é hoje, 15 de setembro, é um episódio de deserto, uma provação, uma aguda capacidade de continuar acreditando contra as evidências materiais visíveis.

Dias mais tarde, já tendo retornado ao mundo dos vivos, Jesus recriminaria Tomé porque só acreditou vendo e louvaria os que podem crer sem ver (Jo 20,29). Crer sem ver é a essência da fé. O ordálio de Maria é ainda mais duro: ela via e sentia o corpo frio do Filho, tocava na morte, e precisava pensar que, dali, surgiria a vida eterna, a água viva do poço da samaritana, o Messias em sua glória, a fonte de redenção. Assim, usando uma construção quase imitativa do grande padre Vieira: Tomé viu e acreditou, são bem-aventurados os que não viram e ainda assim acreditam e, por fim, torna-se corredentora da espécie humana aquela Virgem que tendo enxergado o contrário do que sua alma indicava continuou firme na fé. Há os que acreditam porque receberam a graça de um milagre e há os extraordinários como Maria que acreditam com todas as negativas ao seu redor. Ela fora a Virgem do Silêncio, a que meditava continuamente nas palavras em seu coração (Lc 2,19). Tendo testemunhado com serenidade as provas positivas da fé com o poder do Filho, agora, no deserto das evidências, na solidão do Gólgota, diante do espaço terrível com Jesus morto ao colo e os cadáveres de dois ladrões ao lado, ela permanece fiel, com dor, crente, com angústia, devota, com absoluta e inatingível capacidade de continuar dizendo sim a um plano que sempre excedeu sua compreensão.

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Não sou um homem de fé, todavia admiro imensamente a cena e seu conteúdo angustiante. Não se trata de religião, porém de humanidade. Como manter convicção em tudo quando o mundo desmorona? Eu, que me abalo quando o encanador se atrasa, que me irrito com um sinal que não abre no trânsito, eu, imerso na minha mediocridade cotidiana e no meu rancor vaidoso, tenho de parar ao entrar na Basílica de São Pedro, olhar para a direita e pensar em Jeremias (Lam 1,12): todos vocês que passam pelo caminho olhem e vejam se há dor maior do que a minha. Não há. Mãe com Filho morto excede tudo. Em dias que tantos acreditam apenas quando recebem graças abundantes, Jeremias, Jó e Maria trazem uma espada aguda para o coração humano: há tantas lições na tragédia como há no júbilo. Existe uma Nossa Senhora da Glória porque houve uma Maria das Dores. É tão difícil entender isso? Talvez por isso não sejamos santos. Boa semana para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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