A dimensão humana do campo de batalha

Em Dia D, Antony Beevor detalha o conflito de egos e a tragédia do front na operação decisiva da Segunda Guerra

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Diante dos higiênicos conflitos militares atuais, travados por aviões não tripulados e por soldados computadorizados, a monumentalidade sangrenta da Segunda Guerra Mundial parece pertencer a um passado remoto. O resgate do fator humano do front é o centro de Dia D, do historiador britânico Antony Beevor. O novo livro do autor que tem gosto por batalhas decisivas - ele escreveu também Stalingrado e Berlim 1945 - mostra o que é uma guerra de verdade, em sua mais cruel, caótica e heroica dimensão.A narrativa de Beevor, ante a tarefa de descrever a operação dos Aliados para retomar dos nazistas o controle da França entre junho e agosto de 1944, busca equilibrar-se entre a luta de vida e morte no campo de batalha e o universo egocêntrico daqueles que tomavam as decisões. Em Guerra e Paz, Tolstoi argumenta que nem mesmo Napoleão e Alexandre I da Rússia tinham exata noção da consequência de seus atos, porque "não passavam de instrumentos inconscientes da História". Beevor, porém, nega o fatalismo de Tolstoi quando diz que, no Dia D, quase todos tinham forte consciência de que participavam de um grande acontecimento histórico. "Dificilmente alguém, civis incluídos, estava sem saber que a mais ambiciosa operação anfíbia da história estava sendo deflagrada", disse Beevor em entrevista ao Estado.Dizendo-se inspirado em John Keegan, mestre dos historiadores de guerras, Beevor diz que, até pouco tempo atrás, a narrativa militar limitava-se apenas a ser "a província dos altos oficiais aposentados que desejavam impor uma ordem nos eventos e dar a impressão de que os comandantes no campo eram algo como mestres de xadrez". Com Keegan, isso mudou, afirma, porque a história do front passou a ser escrita também a partir da trincheira. "Foi só quando pesquisei a batalha de Stalingrado que finalmente se tornou claro para mim que era necessária uma integração da história de cima para baixo com a história de baixo para cima", diz Beevor. "É só dessa forma que se reconstituem os verdadeiros efeitos das decisões tomadas sobre a vida dos soldados e dos civis pegos na batalha sem misericórdia."Em seu livro, Beevor luta também para se manter entre a visão convencional - a de que os Aliados lutavam pelo "bem", e o Eixo, pelo "mal" - e uma abordagem mais complexa, capaz de devolver ao campo da história aquilo que estava reservado à mitologia da guerra. Em certos momentos, Beevor se rende à primeira visão, dizendo que o fanatismo era o que diferenciava os nazistas dos Aliados. "Os alemães eram profundamente influenciados pela propaganda, que os persuadiu de que eles estavam lutando para defender seu país da aniquilação, enquanto os americanos e os britânicos só queriam que a guerra terminasse para que eles pudessem ir para casa", argumentou Beevor ao Sabático.Sua própria narrativa, porém, mostra que os Aliados, também movidos por propaganda, eram igualmente capazes de massacrar seus inimigos e de atacar civis. É óbvio que, no frigir dos ovos, os nazistas eram, de fato, o "mal", porque não aceitavam outro desfecho senão a vitória - a alternativa era a destruição total. Mas, ao admitirmos que os soldados americanos e britânicos cometiam atrocidades, estaremos mais próximos de conhecer verdadeiramente a Segunda Guerra, muito além da tentadora retórica moralista.Beevor destaca os limites trágicos da operação - para ele, "a questão sobre bravura e o medo na batalha é um assunto de imensa importância" no livro. O historiador contou que "as baixas psicológicas no lado Aliado foram muito altas, cerca de 30 mil casos só entre as forças americanas". Em sua pesquisa, ele relata em detalhes vivos esse drama. O chão dos aviões que levavam os paraquedistas estava escorregadio porque muitos vomitaram ali o chamado "café da manhã substancial dos condenados". Os homens chegaram exaustos à praia e à luta. Prisioneiros foram fuzilados sem questionamento. Soldados eram crivados de balas e mutilados - um americano dedicou-se ao "hobby" de colecionar orelhas alemãs. "Essa gente virou bicho", disse um sargento americano. "Nunca odiei tanto uma coisa", contou outro americano em carta à família, em referência aos alemães.Mas há relatos de puro heroísmo. "Que paradoxo essa guerra", escreveu um médico americano, "que expõe o que há de pior nos homens, mas também os eleva ao cume do autossacrifício e do altruísmo."Entre os comandantes da operação, por outro lado, a situação não era menos tensa e confusa. Pelo contrário: com a leitura de Dia D, fica claro que, em vários aspectos, a vitória Aliada foi um milagre - a começar pela guerra de egos. Nesse cenário, emerge o general americano Dwight Eisenhower, de quem Beevor destaca o espírito de agregador: "Eisenhower foi um brilhante comandante supremo na medida em que manteve generais rivais juntos", embora não tenha contribuído para o plano. Esse perfil, criticado por alguns dos principais envolvidos na operação - como o general George Patton, para quem Eisenhower não era um "bom soldado", - foi crucial naquele momento, quando mesmo EUA e Grã-Bretanha, tradicionais aliados, se viram em posições opostas a respeito de detalhes da operação.Um dos pivôs das desavenças era o principal chefe militar britânico, Bernard Montgomery, que aparece na narrativa de Beevor como incompetente - e mais tarde, em 1963, foi classificado de "psicopata" por Eisenhower. Além disso, Beevor atribui ao general britânico "excesso de amor-próprio extraordinário". Só Patton, um dos maiores ególatras do mundo militar, era páreo para ele - o americano dizia que Montgomery não o queria no front "porque tem medo de que eu roube o espetáculo, e vou roubar mesmo".Entre os chefes de Estado a situação não era menos tensa. As divergências serviam até de motivo de piada - Churchill dizia que os americanos sempre tomavam a decisão certa, depois de terem tomado todas as outras. Mas houve crises que beiraram a ruptura. Um dos principais pontos de atrito eram o general francês Charles De Gaulle e seu "egocentrismo patriótico", nas palavras de Beevor. O presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, o considerava candidato a ditador. Churchill chegou a lembrar a Roosevelt que "é bem difícil excluir os franceses da libertação da França". Por outro lado, Churchill fez De Gaulle entender que não havia outra escolha senão aceitar a liderança americana: "Toda vez que eu tiver de decidir entre o senhor e Roosevelt, sempre escolherei Roosevelt".Aceitar a liderança americana, porém, implicava admitir a morte de civis como um problema secundário, e esse foi outro fator de importantes divergências entre os Aliados. Eisenhower considerava uma "necessidade operacional" bombardear áreas habitadas. Churchill chegou a dizer que essas ações podiam "deixar atrás de si um legado de ódio" entre os franceses em relação aos libertadores americanos e britânicos. Para Beevor, porém, a questão não pode ser tomada pelo valor de face: "A noção de "crimes" contra a população civil deve ser posta no contexto adequado, e foi o que tentei fazer no meu livro. Qualquer estado de guerra levará à morte de civis". Ademais, diz o historiador, "o terrível paradoxo sobre as democracias na guerra é que, com a pressão interna da opinião pública, os comandantes vão tentar reduzir suas próprias baixas por todos os meios, e isso leva a uma excessiva confiança na munição pesada, para neutralizar o inimigo sem expor seus próprios homens", elevando a possibilidade de baixas civis.As tensões entre os libertadores da França se refletiram até mesmo na festiva entrada deles em Paris, como Beevor mostra em detalhe. Na vanguarda dessa tropa estava uma companhia de republicanos espanhóis esquerdistas, franceses que haviam colaborado com os nazistas e soldados comandados pelo tenente-coronel Jacques Massu, que viria a ser o cruel líder da repressão francesa na Argélia. Era o retrato das contradições de uma guerra que estava longe de acabar ali.DIA D - A BATALHA PELA NORMANDIAAutor: Antony Beevor Tradução: Joubert de Oliveira Medina Editora: Record (714 págs., R$ 79,90)

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