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A Desconversão Humana

Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Tentou a noite toda escrever algo. A tela em branco imprimia a sua crise duradoura. Um escritor sem ideias. Café, cigarro, doses de uísque, nada serviram. Tentara já vinho, conhaque, charuto, macrobiótica. Há meses, o bloqueio criativo apareceu. Noites em busca de inspiração. Precisava escrever, era o seu ganha-pão, seu dom, sua vida, se dedicara anos. Nada. Deixou o computador ligado e foi dormir. O que leva um escritor a parar de escrever? Por que Rimbaud, depois de criar a poesia moderna, sumiu? E Salinger, que escreveu apenas quatro livros? Autoexigência? Atração pelo nada?"Escrever também é não falar, é se calar, uivar sem ruído", dizia Marguerite Duras.Síndrome de Bartleby é a paralisia que atormenta os escritores. Inspirada no personagem de Melville (Moby Dick), copista de um cartório que fica na sua mesa sem fazer absolutamente nada, sem ir a lugar algum. Nem mesmo se alimentava.No dia seguinte, lá estava a frase metafísica na tela do seu computador: "O tempo só corre para quem se preocupa com a perda dele." Quem digitou? Heráclito? Sim, lembrava os pensamentos circulares do pré-socrático. Será que digitara num delírio torturado pelo sono e desespero? Surto de sonambulismo?Sua diarista digitou? Sua diarista não aparecia há dias.Olhou para o lado e viu seu gato vira-lata deitado no canto da mesa, com as orelhas em pé, encarando-o de relance. Não é possível! O gato costumava passear pela mesa sempre que tentava escrever. Por vezes ficava em frente do monitor, tapando a visão. Às vezes brincava com o cursor do mouse. Em outras passeava sobre o teclado. Suas patas apertavam e digitavam apenas frases como "procslxkdjshsdh gfgfggf czvc".Foi você? Ele miou de volta.Repetiu a experiência à noite. Deixou o computador ligado, fechou a porta do quarto, deitou-se. Não conseguia dormir. Tentava escutar os passos do gato pela casa. Mas o silêncio era o maior ruído.Na manhã seguinte, outra frase digitada: "Esperar é também realizar."Olhou para o gato. Parecia dormir profundamente. Sua respiração, ofegante. O batimento cardíaco dos gatos é superior. Ou estava exausto?Mas para quem contar que desconfiava que seu gato mandava mensagens quando ele ia dormir? Não podia para o seu editor, pois fugia dele, que cobrava um romance cujo adiantamento já fora pago. Nem ao melhor amigo, que esperava há meses o prefácio não escrito de um livro quase no prelo.Ninguém sabia da sua síndrome. Vivia o tormento inventando desculpas, "já estou terminando", "deu pau no computador e perdi tudo". Esperava o milagre da criação, a voz de Deus ou do Diabo falando através dele, o despertar do inconsciente, emitindo sinais que chegariam aos seus dedos para movê-los em busca de uma história.Fez as malas. Encheu a casa com potes de água e ração da melhor qualidade. Deixou o computador ligado. Escondeu os brinquedinhos do gato, para que não houvesse distração. Até limpou a mesa, para que seu suposto ghost writer felídeo tivesse a ordem necessária. Despediu-se com carinho. E foi para um flat pulguento do centro da cidade.Passou quatro noites sem sair do quarto, fumando sem parar, ansioso pelo resultado da experiência. E preocupado. Seria seu gato um escritor que precisava da presença do dono para criar? Ou, como a maioria dos gênios, a paz, o silêncio e a solidão são o fogo que ferve as ideias e cozinha a arte?Ao voltar para casa, encontrou-a toda revirada, resultado da solidão de um vira-lata carente: sofá arranhado, livros derrubados, papel higiênico desenrolado. Seu pequeno animal correu para saudá-lo, miou muito, trançou por suas pernas, saudoso. Passo a passo, caminhou até a mesa de trabalho. Tela em branco. Apertou o Ctrl home. Mais de 78 páginas escritas em formato Word, letra areal, tamanho 12. A Desconversão Humana, chamava-se a obra. Que título pretensioso, pensou.Riu sozinho. O que está acontecendo? Quem é você? Perguntou para o bichano que se acomodava no seu colo e ronronava.Leu. Um tratado sobre a solidão e de como todas as possibilidades de busca pela fé e um sentido para a vida criaram um efeito contrário, tornando o homem isolado e inapto a conviver com a própria consciência. Segundo o gato writer, a criação de uma moral, a absorção de deveres e tabus, embrulharam a nossa essência. "Deve-se viver o nada", escreveu.Maravilhado, apesar de não ter bagagem para compreender tudo, enviou por email, sem nenhum comentário, apenas escrito "livro novo" no assunto, para o seu editor.A resposta veio no dia seguinte: "Virou autor de autoajuda?" Que tosco e insensível editor. Que encaminhou para o selo deste gênero da editora, que aprovou o manuscrito, revisou e entregou para o Departamento de Marketing, que preparou o lançamento em quatro meses.Resenhas? Apenas num jornal de bairro e numa revista literária cristã. Porém, pouco a pouco, o boca a boca interferiu no processo. A Desconversão Humana em oito meses entrou para a lista de best-sellers, categoria não ficção. Em oito semanas, atingiu o topo da lista. Seu telefone não parou mais. Queriam entrevistas, palestras, explicações. Editoras e agentes estrangeiros o procuraram. O livro foi traduzido e publicado em 65 países. Em todos eles, sucesso. Logo começaram a surgir explicações e versões resumidas. Um escritor pilantra irlandês lançou Como Entender a Desconversão Passo a Passo. A editora propôs uma versão infantil ilustrada. Um poeta de Mato Grosso lançou O Bê-á-bá da Desconversão. Um indiano escreveu A Desconversão Tântrica. Um sueco, A Desconversão Líquida.Sua vida não teve mais sossego. Por onde andava, tinha que dar autógrafos e tirar fotos em celulares. Seu email estava entupido: pedidos de entrevistas, seminários e casamentos. Seus amigos literatos o ignoraram, dominados por preconceitos contra livros de sucesso. Familiares vieram pedir dinheiro emprestado. Estressado, decidiu se isolar e mudar para uma praia deserta, para um bangalô sem luz elétrica, e viver recluso. Claro. Levou o gato com ele. Que nunca mais pôde escrever. Mas se esbaldou: natureza e peixes.

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