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A desconstrução do conceito do clássico

O pianista italiano Luca Chiantore apresenta hoje, ao lado de David Ortolá, concerto em que valoriza a improvisação

Por JOÃO MARCOS COELHO
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Em sua passagem por São Paulo esta semana, vindo de Buenos Aires e Porto Alegre, o musicólogo e pianista italiano Luca Chiantore, 47 anos, deu masterclasses, palestras e concertos em âmbito universitário com o Tropos Ensemble, duo de pianos que forma ao lado de David Ortolà. A partir de Barcelona, onde está fixado há 21anos, escreveu estudos de referência como Historia de la Tecnica Pianistica e Beethoven al Piano e lidera o projeto editorial pedagógico Musikeon. Ontem, fez um recital inovador no auditório do Departamento de Música da USP, que repete hoje no teatro da Faculdade Santa Marcelina, às 16 horas, com entrada franca. É uma pena que Chiantore não seja tão conhecido, ao menos no Brasil, quanto um Alex Ross, por exemplo, autor de O Resto é Ruído (Companhia das Letras). Mesmo reconhecendo o valor do enfoque de Ross ao contar a história das músicas do século 20, considera superficial a "estética da inclusão", beirando à geleia geral do vale-tudo, praticada pelo crítico da revista New Yorker. É curioso como, navegando em águas afins, Chiantore opera uma "desconstrução" muito mais profunda e consequente do conceito de música clássica. Parte do exame de manuscritos de exercícios técnicos e fragmentos de Beethoven para elaborar um diagnóstico agudo da vida musical contemporânea. Não à toa, seu duo chama-se "Tropos": "É como na Ave-Maria, de Bach-Gounod", diz. "Ao prelúdio de Bach, Gounod acrescentou séculos depois uma melodia, ou seja, um tropo." Argumenta que o improviso - o tropo por excelência, presente no jazz - foi a base do avanço composicional de Beethoven. Atualmente, os músicos não se atrevem a "deformar" a partitura de um Mussorgsky; no máximo lhe acrescentam "penduricalhos" externos (como Leif Oves Andsnes em Pictures Reframed, com videoarte de Robin Rhode e vídeo do "afogamento" de um Steinway numa piscina). "É preciso adequar as obras do passado aos ouvidos do presente", argumenta Chiantore. E passa à prática. Ontem, ele tocava a partitura dos Quadros enquanto David Ortolà fazia o tropo, ou seja, acrescentava uma nova música, ora escrita, ora improvisada, por sobre o texto do compositor russo. Em Cahier d'Esquisses, ou caderno de esboços, de Debussy, peça curta rabiscada enquanto compunha La Mer. Chiantore tocou a partitura e Ortolà, uma música sobreposta, tecida com improvisos e transplantes de trechos de La Mer. Em ambos os casos, um saudável atrevimento. Não é o único, mas um caminho engenhoso para renovação do hoje engessado ritual da interpretação clássica. "Os melômanos, para quem a música clássica é algo mais do que mera 'música para relaxamento', continuam solicitando algo novo dos intérpretes. Todos nós, no fundo, pedimos que a música nos surpreenda, sobretudo na hora do concerto." E alerta: "Há inúmeras outras maneiras de 'deformar' a obra, e uma das mais frequentes é a de respeitar literalmente a partitura mas esvaziando as notas de significado".

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