
16 de março de 2014 | 02h11
- Estamos indo para aí.
Samuel não entendeu.
- "Estamos"?
- O Marcão e eu. Ele sabe do nosso caso.
- O quê?!
- Eu contei.
- O QUÊ?!
- Calma. Ele só quer conversar. Eu estou indo junto com ele.
- Lourdes, você enlouqueceu? Ele vai me bater. O Marcão é o dobro do meu tamanho!
- Ninguém vai bater em ninguém. O Marcão quer ter uma conversa civilizada. Nós três. Aliás, já estamos no carro. Ele está aqui do meu lado.
- Lourdes...
- Eu só achei que devia lhe avisar. Em cinco minutos estaremos aí.
*
Fugir, pensou Samuel. Era a única coisa a fazer. Covardemente. Abjetamente. Mas fugir. Ou ficar? O Marcão só queria ter uma conversa civilizada. Eu sou mais civilizado do que o Marcão. Em conversa civilizada, eu ganho. O Marcão é um primitivo. Os únicos livros que gosta são catálogos de peças de automóvel, e só para ver as figuras. Eu sou um homem sofisticado. A própria Lourdes é quem diz que, comparado com o Marcão, eu sou um príncipe renascentista. Mas por que a Lourdes inventou de contar pro Marcão que nós... Ela sabe que eu vou enrolar o Marcão, é isso. Que eu vou convencer o Marcão de que somos pessoas modernas, que hoje em dia a mulher ter um amante é até lisonjeiro para o marido. Que não existe nada mais antigo e superado do que marido quebrar a cara de amante. Depois da nossa conversa o Marcão vai me agradecer por estar comendo a sua mulher e introduzindo-o na nova moral, tornando-o um autentico homem do novo século. Ou então...
*
Ou então a Lourdes contou tudo porque teve uma recaída e descobriu que prefere o troglodita. Misturou remorso com decepção e quer ver o maridão quebrar a cara do amante insatisfatório. Ou era no que dera, a leitura de tantos livros sobre masoquismo feminino: a Lourdes queria sofrer, vendo-o apanhar. De uma forma doentia, ela instigava o marido para quebrar a cara do amante e assim apimentar o caso dos dois. O que ela estaria dizendo para o marido, no carro, naquele instante? Bate, mas não quebra o nariz? Quero ele culpado, mas inteiro, o meu príncipe?
*
Cinco minutos já tinham passado e ele ainda não decidira: fugir ou ficar? E se ficar, preparar-se para o que? Empunhar uma faca da cozinha e atacar primeiro? Esperar atrás da porta e golpear a cabeça do brutamontes com uma frigideira? A Lourdes tinha telefonado do carro para avisar que estavam chegando para que ele estivesse preparado. Ou ele deveria - civilizadamente - receber o casal, indicar onde poderiam sentar-se para começar a conversa, oferecer um cafezinho ou, quem sabe, um uisquinho? E começar a conversa, como?
- Marcão, eu sei que é difícil ser objetivo numa situação destas, mas...
Soou a campainha do interfone. Eles tinham chegado. Fugir não era mais uma opção. Samuel foi até a cozinha, pegou uma faca e escondeu-a embaixo de uma almofada do sofá. Para ser usada ou não, conforme transcorresse a conversa.
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