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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A cabeça do ateu

O complicado, ultimamente, não é crer ou não crer em Deus. O difícil é crer no homem

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Atualização:

Acho estranha a palavra ateu. Ela deriva do grego e significa a negação de Deus (“a” significa negação e “theos” deus). Como toda definição, ela fala mais dos valores da pessoa que a utiliza do que sobre o alvo do termo. Seria como definir a mim, Leandro, como não asiático ou não peixe. Conhecer pela negação é problemático. 

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A concepção de Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram resposta para o crente: origem das coisas, sentido da vida, moral, etc. Deus é a hipertrofia da racionalidade, porque tudo se torna lógico com Ele. Mesmo não construindo um campo empírico irrefutável, o religioso pode responder a quaisquer desafios. O crente sabe sobre a origem das coisas (teogonia) e questões do bem e do mal (teodiceia). No campo religioso, há resposta para uma inocente criança natimorta e para um vilão nonagenário atuante. Uma mulher extraordinária como dona Zilda Arns morre em um terremoto? Há explicação. Um político corrupto recupera-se de um câncer? Também encontramos na fé a elucidação do enigma ou o reconhecimento de caminhos insondáveis para mim e acessíveis ao Ser Supremo. 

Um ateu tem menos respostas do que um religioso. Porém, ao eliminar a hipótese Deus, ele comete mais do que uma restrição metodológica. A voz que nega a existência de divindade(s) é lida como negadora de todo o fundamento moral e social. O edifício social cimenta-se com crenças e Deus é o fiador do sistema.  Protágoras de Abdera, famoso filósofo grego clássico, sofreu um processo em plena guerra do Peloponeso. Seu tratado Sobre os Deuses afirma que “não posso saber se existem ou não”. A dúvida de Protágoras nasce de duas posições. A primeira é sofista: relativização das verdades absolutas. A segunda é seu antropocentrismo radical: o homem é a medida de todas as coisas. O ceticismo de Protágoras é muito mais agnóstico do que ateu. Ele duvida se podemos saber algo sobre os deuses, não exatamente a negação da existência deles. 

As ideias de Protágoras não eram uma novidade na Atenas do quinto século antes da era cristã. A novidade é a perseguição: seus livros foram queimados e ele foi expulso da cidade. O Estado começava a alcançar quem duvidava dos deuses oficiais. Similar e contemporâneo foi o processo contra Anaxágoras de Clazômena (foi professor de Péricles) que buscava causas naturais para os fenômenos como terremotos e raios. Não sabemos ao certo se ele foi morto, preso ou exilado. A democrática cidade-Estado se abalava com ideias de agnosticismo ou ateísmo. O grande Sócrates viveria também a acusação de impiedade. 

A vitória do Cristianismo na Europa Ocidental fez um refluxo do ateísmo ou do seu registro. Multiplicam-se anticlericais ao longo do milênio seguinte, escasseiam ateus e agnósticos. Muita gente não gosta de padres, freiras ou da instituição Igreja. Poucos, quase ninguém, duvidam da existência de Deus. Na verdade a acusação de hereges é sempre que a instituição da Igreja Católica não corresponde ao verdadeiro propósito divino. A heresia, como a dos cátaros ou valdenses, quase sempre, é um reforço da crença em Deus e acusação contra o abandono do divino pelo papado ou seus representantes. 

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Lucien Febvre, em uma obra clássica sobre a descrença e a obra de Rabelais, afirmava que era quase impossível existir um ateu até o Renascimento, porque não havia nem palavras ou estruturas mentais para comportar a negação de Deus. Anos depois, essa tese caiu por terra, mas ainda é certo dizer que o ateísmo rareou muito até o século 16.  Com o avançar da modernidade, emergem pensamentos claramente ateus, como o Barão D’Holbach e, posteriormente, o filósofo Ludwig Feuerbach. No sentido como o entendemos, o ateísmo é derivado do Iluminismo e do materialismo do século 19. 

Já abordei outras vezes o que pode levar alguém ao ateísmo, caso tenha crescido crente. Existem muitos tipos de ateus. Um abunda entre jovens: o negador de Deus que faz da ideia uma cruzada contra pais (religiosos) e instituições. O ataque é uma plataforma contra a autoridade. Há o ateu em relação que questiona o mal. Assim como a origem do universo é um argumento forte para religiosos, a presença do mal em um mundo no qual tudo foi criado por Deus e nada existe sem seu consentimento é um bom ponto para céticos da já citada Teodiceia. Partem do argumento do filósofo Epicuro: “Quer impedir o mal, mas não é capaz? Então ele é impotente. Ele é capaz, mas não está disposto? Então, ele é malévolo. Ele é capaz e disposto? Donde vem então o mal?”.

Há ateus da revolta. São os que pediram com intensidade pela cura de um filho, pelo fim de um problema grave e não alcançaram a graça. É uma revolta vingativa: Deus não me atendeu e eu me vingo dizendo que ele não existe.  O tipo mais complicado de ateu é o catequista, aquele que herdou o pior das religiões e fica agressivo pregando sua fé negativa.  Escasseiam religiosos e ateus tranquilos. Tanto a fé como a negação dela são um guarda-chuva poderoso para dores variadas.

Cresce, hoje, um pensamento chamado apateísmo, a indiferença em relação à religião. Não se trata de um ataque ou defesa de Deus, porém um afastamento da experiência religiosa. Funciona com o indivíduo pensando no sagrado como se pensa na política da Mongólia: existe, todavia tenho pouco interesse. 

Nunca associei ética à fé ou a sua ausência. Temos ateus e religiosos éticos, bem como violências ligadas aos dois campos. O complicado, ultimamente, não é crer ou não crer em Deus. O difícil é crer no homem. É árduo acreditar em si. Bom domingo a todos vocês. 

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Opinião por Leandro Karnal
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