A busca de novos modelos

Como os descendentes do ‘boom’ levam adiante a herança de Macondo

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Por Carlos Granés
Atualização:

O escritor mexicano Jorge Volpi disse certa vez que as letras latino-americanas se diferenciavam de outras tradições literárias porque nossos clássicos estão vivos. Ele tinha toda a razão. Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, três dos principais nomes e dos mais vigorosos renovadores da literatura na América espanhola, continuam perfeitamente vivos e representando uma referência que dificilmente pode ser ignorada por qualquer romancista que escreva em espanhol atualmente. Com 85 anos recém-completados, García Márquez se afastou da vida pública e já não se espera que ele continue a produzir grandes obras, mas Fuentes e Vargas Llosa mantêm uma frenética atividade literária e jornalística e, além de publicar romances ambiciosos, participam dos debates culturais e políticos mais importantes de nossa época. O Prêmio Nobel concedido a Vargas Llosa em 2010 ratificou em nível mundial aquilo que já era sabido na América Latina: o boom latino-americano foi um fenômeno cultural de grande transcendência, que produziu uma série de obras universais e deu à cultura latino-americana um lugar no mundo.

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Há exatamente 50 anos Vargas Llosa ganhou o prêmio Seix Barral com A Cidade e os Cachorros, romance no qual já são vislumbrados muitos dos temas que se tornariam uma obsessão para os escritores do boom: a arbitrariedade do poder, as diferenças sociais, a opressão e a rebelião. As imagens que inspiraram muitos escritores desta geração foram as do ditador e do guerrilheiro. A América Latina na qual viveram enquanto era gestada sua vocação criadora foi o cenário de golpes militares e sublevações armadas. Com exceção de Colômbia e Costa Rica, os golpes militares e as ditaduras foram a regra e, em geral, conviveram ou se alternaram com ferozes levantes de guerrilheiros. Era de se esperar que todas as tensões sociais geradas por esta oposição entre o poder arbitrário e a revolução violenta impregnassem as obras de muitos destes autores.

Mas o que houve nos últimos 50 anos? Será que os escritores continuam interessados na revolução e na ditadura? Teriam novos problemas sociais gerado estilos e temas literários distintos? Tanto os escritores do boom quanto seus precursores - Onetti, Rulfo, Carpentier, Asturias - foram inspirados pela ideia de recuperar o passado da América Latina e penetrar fundo nos seus conflitos, mitos e traumas para criar uma imagem literária do continente. Seu olhar e suas preocupações estavam centradas na sua região, e a literatura desenraizada de Borges era uma exceção exótica entre seus contemporâneos. Hoje em dia ocorre o contrário. Os romancistas abriram seus horizontes e agora seus temas não se circunscrevem forçosamente à realidade latino-americana. Alguns deles, como o boliviano Edmundo Paz Soldán, os mexicanos Volpi e Ignacio Padilla, ou os argentinos Rodrigo Fresán e Patricio Pron, escrevem sobre a violência nos Estados Unidos, sobre os anos 60 em Londres, o terrível passado do nazismo ou a queda do império soviético. Outros já não precisam nem mesmo escrever em espanhol para serem considerados autores hispano-americanos, como demonstram os casos do peruano Daniel Alarcón e do dominicano Junot Díaz. O traço que distingue a literatura hispano-americana atual é o fato de não haver nenhum elemento estilístico nem temático que aglutine todos os autores do continente.

As gerações recentes de escritores hispano-americanos se tornaram cosmopolitas. O chileno Roberto Bolaño escreveu sobre o México no seu célebre Os Detetives Selvagens, e o peruano Carlos Yushimito situou seus contos no Brasil sem nunca ter visitado o País. Outros autores narram suas experiências como imigrantes na Espanha, como o colombiano Santiago Gamboa e o peruano Sergio Galarza, ou nos EUA, como o chileno Alberto Fuguet. Muitos autores vivem no exterior, lecionam em universidades americanas, têm prestigiados agentes literários e publicam suas obras por grandes editoras, e todas estas mudanças vitais se refletem em histórias desenraizadas dos povos latino-americanos e suas cidades, elemento que foi primordial nos romances iniciais do boom. Neste sentido, a influência de Borges se mostrou muito mais forte que a de García Márquez. Agora, como previa o escritor argentino, toda a história e geografia universais estão à disposição do autor latino-americano como material para suas ficções.

Não deixa de ser surpreendente que o realismo mágico tenha perdido quase por completo sua influência entre os escritores com menos de 50 anos. Os romancistas reunidos na coletânea McOndo (1996) - o chileno Fuguet, o boliviano Paz Soldán, o colombiano Jorge Franco, o equatoriano Leonardo Valencia, entre muitos outros - e a chamada geração do crack - formada por mexicanos em meados da década de 90 - romperam com o realismo mágico e seu exemplo foi assimilado pelos autores jovens. Já é raro encontrar nos romances dos autores com menos de 50 anos os elementos exóticos, folclóricos ou mágicos. No Peru continua a existir uma corrente literária indigenista, mas seu impacto é local e se esgota nas diatribes furibundas que são lançadas contra os escritores desenraizados e “antiperuanos”. Tanto os leitores hispano-americanos quanto as grandes editoras privilegiaram os autores que buscam alternativas diferentes das propostas de García Márquez e, pouco a pouco, leitores da Europa e dos Estados Unidos começaram a aceitar esta mudança estética.

Mas também é verdade que os problemas vividos atualmente na América Latina continuam a influenciar muitos escritores. O tema da opressão e da revolução não desapareceu por completo. Durante as últimas décadas se continuou a escrever sobre as ditaduras, como em Respiração Artificial, do argentino Ricardo Piglia, ou em Noturno do Chile, de Bolaño; e sobre as guerrilhas, como A Hora Azul e Abril Vermelho, dos peruanos Alonso Cueto e Santiago Roncagliolo. Ainda assim, o tema que mais tem inspirado a literatura ultimamente é o narcotráfico e a violência que se desprende do seu poder corruptor. Por motivos óbvios, México e Colômbia têm sido os principais países nos quais o tema vem sendo tratado, por mais que o nicaraguense Sergio Ramírez também tenha ambientado um de seus romances, El Cielo Llora por Mí, em meio à luta entre os cartéis de Cali e Sinaloa.

A narcoliteratura conferiu ao México muito destaque nos últimos anos, e talvez seus melhores expoentes sejam Elmer Mendoza e Yuri Herrera. Mas este gênero se valeu mais das macabras manchetes dos jornais do que da qualidade literária para prender a atenção do público. Algo semelhante ocorreu na Colômbia, com a diferença de que lá o personagem que inspirou a imaginação de muitos romancistas foi o assassino de aluguel, o jovem sem escrúpulos que matava qualquer um por dinheiro. A Virgem dos Sicários, de Fernando Vallejo, e Rosario Tijeras, de Jorge Franco, são os exemplos mais notáveis, por mais que muitos outros livros, como Sangre Ajena, de Arturo Álape, ou El Pelaíto Que no Duró Nada, de Víctor Gaviria, trataram de expor as condições sociais que convertem os jovens dos bairros de Medellín em mortíferos assassinos a serviço do narcotráfico. Como ocorre com a narcoliteratura, neste gênero - chamado ironicamente de sicaresca antioqueña pelo colombiano Héctor Abad Faciolince - é apresentada uma imagem benévola e compreensiva do assassino de aluguel, incluindo uma defesa do niilismo e uma justificativa para a violência, que mereceria um debate mais sério e mais profundo do que aquele que ocorre atualmente.

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Não é por acaso que a crítica a este gênero literário partiu de Abad Faciolince, cujo pai foi morto em 1987 por dois assassinos de aluguel que andavam de moto. Esta é a história autobiográfica que ele relata em A Ausência Que Seremos (2005), primeira obra-prima escrita na América hispânica sobre a violência que decorre do narcotráfico. Com este livro, Abad Faciolince não apenas revelou a comovente relação que tinha com o pai, médico que dedicou a vida a defender os direitos humanos e a atender aos problemas de saúde pública (que por isto despertou todo tipo de suspeita entre os paramilitares de extrema direita), como também ajudou a consolidar um novo gênero, o do romance de não ficção ou romance de família, que começa a produzir livros muito interessantes no continente. O Inútil da Família e Missing, dos chilenos Jorge Edwards e Alberto Fuguet, são outros dois exemplos deste tipo de obra que mistura crônica, investigação jornalística, autobiografia e experimentação formal.

Um último caso que deve ser mencionado neste breve panorama da literatura hispano-americana dos últimos 50 anos é o do colombiano Juan Gabriel Vásquez. Nos três romances que escreveu, todos situados em períodos distintos da história da Colômbia - os anos 40, o começo do século 20 e os anos 60 -, Vásquez se propôs a desvendar como a História, maiúscula, pode chegar a afetar as histórias de indivíduos que pareciam estar à margem dos grandes acontecimentos. Vásquez conseguiu assimilar a experiência do boom latino-americano para forjar seu próprio projeto literário. Já não tenta recriar literariamente seu país nem seu continente, nem explorar seus mitos fundadores, sua identidade ou sua particularidade histórica, e sim demonstrar que a América Latina não está à margem das batalhas ideológicas, políticas e culturais que são travadas no restante do mundo.

Se os autores do boom tiveram que reinventar literariamente a América Latina para conferir-lhe um lugar no mundo, os autores da geração encabeçada por Vásquez escrevem para decifrar como a América Latina é afetada quando consegue ser bem-sucedida no âmbito internacional. García Márquez, Fuentes, Borges e Vargas Llosa, e também autores como Tomás Eloy Martínez, Fernando del Paso e Antonio Skármeta tiveram que criar grandes romances para inserir o continente na cultura universal. Os romancistas que vieram depois tiveram a responsabilidade de assumir as consequências deste feito. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

CARLOS GRANÉS É DOUTOR EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UNIVERSIDADE COMPLUTENSE DE MADRI E AUTOR, ENTRE OUTROS TRABALHOS, DE EL PUÑO INVISIBLE (TAURUS) 

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