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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|A bofetada no prêmio

Como não ficar desapontado quando se descobre que nosso astro favorito é capaz de perder o controle?

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Atualização:

A premiação com o Oscar é, sem exageros, o Nobel do cinema: a “sétima arte”. A que veio sintetizar na obra dos seus grandes mestres e do meu favorito, Frank Capra, o que de belo existe na literatura, dança, música, pintura, arquitetura e escultura. Sem esquecer, obviamente, a teatralidade que, no Brasil, foi reconhecida ao admitir na Academia Brasileira de Letras a excepcional atriz Fernanda Montenegro. Muitos viram, mas poucos encararam, como Frank Capra realizou na sua autobiografia – The Name Above the Title (Macmillan, 1971) –, como o cinema difere de todas as outras artes, porque o filme é imagem em movimento e, assim, tem uma imensa intimidade com todas as artes, sobretudo com a música e a dança, pois todo filme tem ritmo e melodia, essas dimensões que fornecem intencionalidade à música e, sobretudo, à literatura.

Will Smith sobe ao palco e dá um tapa em Chris Rock após piada com sua mulher Foto: Robyn Beck/AFP

O título do livro de Capra é uma tese redescoberta pelo cinema francês e pelo “cinema novo” brasileiro: o filme é do seu diretor, embora sua impressão, capa, tipo de papel e até mesmo a inspiração tenham vindo de outro lugar. Uma infância paupérrima como imigrante que, em 1903, chegou da Sicília com seus sete irmãos à Califórnia, Capra deixa ver porque ele foi capaz de realizar suas obras-primas. Filmes com mensagens poderosas, repletas de confiança no melhor de nossas humanidades. Filmes como A Felicidade Não se Compra capazes de mudar milagrosamente nossa visão de mundo. Um cinema com um propósito ou uma perspectiva.  Capra foi um dos mais premiados com o Oscar na história do cinema. E o tapa na cara do apresentador pelo excelente premiado Will Smith revela, entre um milhão de palpites e opiniões, como o cinema confunde realidade com ilusão. Seria como Carlitos (de Chaplin), o vagabundo despossuído, vítima e ofendido por um sistema injusto, usasse dinamite para protestar contra uma ofensa. Como não ficar desapontado quando se descobre que o nosso astro ou nossa estrela favoritos são meramente humanos e, tal como nós, capazes de perder o controle e desafinar um ritual cuidadosamente planejado e ensaiado? Como é triste e ao mesmo tempo fundamental descobrir a diferença entre um Papai Noel, cujos filhos recebem presentes, e o ilusório velhinho da vida real, como diz a comovente marchinha de Assis Valente, que “nem todo mundo é filho de Papai Noel!”. E quem, com um gesto brutal, pode destruir um ritual que legitima o sucesso – esse “êxito” imprescindível nos sistemas democráticos? 

Opinião por Roberto DaMatta
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