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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|A Bela e o monstro

Tinha uma pequena e sensualíssima cicatriz no joelho esquerdo...

Atualização:

Ava Gardner é até hoje considerada a mulher mais linda de todos os tempos. Para mim, foi. Como nunca a vi pessoalmente, posso afirmar, com absoluta justiça, que a mulher mais linda que eu vi de perto foi Sharon Tate. Lembrei-me dela na segunda-feira, ao saber da morte de Charles Manson. Quem, aliás, não se lembrou imediatamente dela na segunda-feira? Para conhecer de perto Sharon Tate tive de embarcar num cruzeiro, a bordo de um daqueles barcos da série Love Boat, que partiu da Cidade do Panamá, aportou em Acapulco e rumou para Los Angeles. Típico junket hollywoodiano dos anos 60, quando os grandes estúdios esbanjavam fortunas nos lançamentos de seus produtos mais ambiciosos comercialmente: todas as despesas pagas, inclusive os 15% das gorjetas. Bastava pôr na nota o nome do estúdio que patrocinava a mordomia (no caso, a 20th Century-Fox), o número do quarto, da suíte ou do camarote, e assinar. O motivo de toda aquela extravagância era a première latino-americana de O Vale das Bonecas (Valley of the Dolls), baseado no homônimo best seller de Jacqueline Susann. Pensei que meu prêmio de consolação pela ausência, no junket flutuante, de Susan Hayward, seria conhecer e entrevistar outra protagonista, Patty Duke, que me encantara com sua interpretação de Helen Keller em O Milagre de Anne Sullivan, mas quiseram os deuses que a terceira jovem atriz do elenco fizesse cessar tudo que a antiga Musa cantara. Sua aparição se deu na noite de 10 de dezembro de 1967, no deque principal do Princess Italia, sob o luar e as estrelas de Acapulco. Bernard Flatow, maestro da publicidade da Fox para a América Latina, me apresentou primeiro ao diretor do filme, Mark Robson, que ficou prosa de saber que os críticos de cinema do Brasil ainda se lembravam de que ele ajudara a montar Cidadão Kane e fizera parceria com Val Lewton, produtor dos melhores filmes de horror dos anos 40, também na RKO.  Em seguida, a epifania. “Esta é Miss Sharon Tate”, introduz Flatow. Devo ter dito o protocolar “nice meeting you” e ouvido a mesma coisa-acrescida de um surpreendente adendo: “A primeira revista a publicar uma reportagem comigo era do Brasil, Claudia. Você conhece?” Na época trabalhava na revista Fatos & Fotos e no Jornal do Brasil. Podia ter mentido, para fazer média, mas não menti.  A escultural e luminosa loura estava de preto. E de minissaia. Tinha o sorriso mais faceiro e feiticeiro imaginável, voz macia, afetação zero. Durante a festa me contaram que a recalcada e mandona filha de Darryl F. Zanuck, chefão da Fox, ausente do lançamento, ficara na maior bronca por ela ter-se recusado a vestir uma roupa over assinada por Travilla, o costureiro do filme, horrível, diga-se. O estúdio queria que ela continuasse “in character”, encarnando a personagem Jennifer North, estrelinha escravizada ao esquematismo sexista de Hollywood, viciada em soníferos e punida com um câncer no seio. Mas a atriz preferiu ser ela mesma: Sharon Tate. O que já era muito. O que já era o máximo. Tinha dela uma imagem difusa. Desconhecia seu primeiro filme, O Olho do Diabo, não me lembrava de sua fugaz aparição em Não Podes Comprar Meu Amor (The Americanization of Emily), nem da série de TV A Família Buscapé, sua estreia no show business, e só na volta da viagem pude apreciar-lhe as curvas na comédia Não Faça Onda. Na tela, bem entendido, porque ao vivo tive dez dias para apreciá-las cotidianamente, à beira da piscina do Princess Itália. Conversávamos todas as manhãs. Ela sempre de biquíni amarelo, igual ao de Malibu, a ninfa aquática de Não Faça Onda. Tinha uma pequena e sensualíssima cicatriz no joelho esquerdo, não usava maquiagem, nem sequer à noite, apenas vaselina. Recendia a Milk & Pearls, um sabonete para moças de fino trato. Não gostava de perfume. Com uma pequena toalha sobre o que na época ainda chamavam de omoplata, uma sempre renovada pátina de lipbalm nos lábios ao sair da piscina, Sharon contou-me histórias de cinema, criticou as frivolidades de Hollywood, revelou-me detalhes de sua ainda curta carreira (de como fizera figuração em Barrabás, perdera o papel de Liesl em A Noviça Rebelde, e saíra da produção de The Cincinatti Kid, junto com o diretor Sam Peckinpah), e das complicações que o namorado Roman Polanski então enfrentava com o produtor de Dança dos Vampiros, Martin Ransohoff, por coincidência, o mesmo que a trocara por Tuesday Weld em The Cincinatti Kid (no Brasil, A Mesa do Diabo). Logo no primeiro dia de cruzeiro, peguei-a grudada em The Painted Bird (O Pássaro Pintado), de Jerzy Kosinski, que supus recomendado por Polanski, ex-colega de Kosinski na Escola de Cinema de Lodz, na Polônia. Qual não foi minha surpresa ao ouvir que o livro lhe fora indicado por um velho amigo de Paris chamado Luis Buñuel. Enquanto ela lia um best seller decente, eu, por obrigação profissional, gramava humildemente o calhamaço de Jacqueline Susann. Ler ficção era o que mais “excitava sua libido intelectual”. Dizem que terminava a leitura de Tess of the d’Ubervilles, de Thomas Hardy, no fim de semana em que a Família Manson assassinou-a barbaramente. Sonhava viver Tess no cinema, dirigida por Polanski, que levaria 10 anos para concretizar o projeto, com Nastassia Kinski lugar de Sharon. (Kosinski, por sinal, quase morreu na chacina de Cielo Drive. Combinara passar o fim de semana na companhia da atriz, mas perdeu o último voo Nova York-Los Angeles disponível. Também teria um fim trágico, 22 anos mais tarde, morto por uma dose letal de álcool e drogas e um saco plástico enfiado na cabeça.) Filha de militar, Sharon, texana de Dallas, passara a juventude na Itália (em Vicenza, na região do Vêneto), depois de uma precoce experiência como modelo. Tinha apenas seis meses de idade quando a elegeram Miss Tiny Top, título que em nada serviu para impulsionar sua futura carreira, ao contrário dos outdoors da Coppertone estrelados, na mesma época, por uma menina chamada Candice Bergen. Sharon era de 24 de janeiro. Por um dia não nascemos no mesmo dia, com apenas um ano de diferença, a favor dela. Tudo a favorecia. Até que em 9 de agosto de 1969 deixou de favorecer. 

Opinião por Sérgio Augusto
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