A arte contemporânea brasileira em revista

Mostra no Paço Imperial, no Rio, traça um interessante panorama da produção nacional dos últimos 50 anos, dividida em blocos com o contexto de cada época

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Por Agencia Estado
Atualização:

Aproximar-se da produção artística contemporânea brasileira não é tarefa fácil. A crescente sofisticação dessa produção, os múltiplos diálogos com as mais diferentes correntes internacionais e o crescimento exponencial da produção tornam muitas vezes o segmento excessivamente hermético, assustando os leigos e confundindo o público interessado. Daí a importância de eventos como a mostra Caminhos do Contemporâneo, em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Reunindo 415 obras assinadas por 176 artistas, o evento não pretende encerrar uma única interpretação da arte feita no País entre 1952 e 2002. Muito pelo contrário: o grande mérito dessa seleção, que contou com a colaboração de uma série de historiadores e críticos, é o de refletir os mais diferentes aspectos da produção nacional, inserindo-a sempre no contexto econômico, social e político do período em questão. Subdividida em cinco blocos, que correspondem a cada década do período analisado, a mostra traça uma espécie de panorama cultural geral. Evidentemente, como é natural numa exposição com escopo tão amplo, há várias ausências. Mas isso não tem grande importância, já que as eleições individuais não têm tanta importância. Ao menos para o público em geral. São exercícios de reflexão e condensação como esse que nos ajudam a compreender melhor nossa cultura, a enxergar suas riquezas e fraquezas. A exposição tem um itinerário invertido, iniciando com uma seleção de trabalhos da década de 90 e dos primeiros anos do novo milênio. A não ser pela excessiva presença de artistas fortemente representados no circuito institucional - é forte a presença dos selecionados para a 25.ª Bienal de São Paulo, por exemplo -, a seleção é ampla e parece representar os vários caminhos explorados no período. É bom ressaltar que a seleção não segue apenas o critério geracional. Ou seja, um artista como Nelson Felix, que tem grande importância para a geração dos 90, está entre os destaques desse módulo. Da mesma forma, Lygia Pape - uma das musas da arte contemporânea brasileira - foi selecionada em quatro dos cinco núcleos (décadas de 50, 60, 70 e 80). Em termos de contextualização, os 90 surgem como o período em que se confirma a hegemonia econômica, o poder do mercado sobre a produção (e uma conseqüente reação ao individualismo por meio do ressurgimento de grupos de criação coletiva), assim como a aceitação internacional da arte brasileira. O diretor do Paço e curador da exposição, Lauro Cavalcanti, faz questão de esclarecer que a divisão cronológica "é apenas um esqueleto", uma estrutura central. Evidentemente, cada década tem suas especificidades, mas idéia é a de que os diferentes tempos se sobreponham, criando uma rede de relações e imagens. Assim, nos anos 50 predomina o concretismo, e no cenário mais amplo, o otimismo desenvolvimentista. Uma das obras que se destacam nessa seleção é Imprevisto, de Walter Smetak, um instrumento musical criado pelo músico baiano que mais parece uma escultura. Nos anos 60 surge com grande peso a questão da contracultura, a necessidade dos artistas de se contrapor à repressão política; na década de 70 há uma radicalização das pesquisas de vanguarda, o surgimento de uma série de pesquisas conceituais e a apropriação da fotografia como linguagem de criação artística. Nesse núcleo há uma quantidade maior de resgates, a inserção de artistas pouco lembrados hoje, como Luis Fonseca, morto em 1996, e que se recusava a participar do circuito expositivo. Nos 80, finalmente, o protesto vai dando lugar a uma inserção mercadológica cada vez maior, a uma readaptação mais plástica da arte, uma necessidade de reatar com linguagens que haviam ficado à margem, como a pintura. Não faltam, aliás, belos exemplos da rebeldia bem-comportada da geração dos anos 80, como uma excelente pintura de Luiz Zerbini que mostra jovens motoqueiros flutuando no céu do Rio. Todo esse percurso é acompanhado por uma seleção de imagens, vídeos e fotomontagens (feitas em parceria com o Centro de Pesquisa e Documentação da FGV) que resultam tão interessantes quanto a seleção de obras de arte. Algumas brincadeiras curatoriais fazem com que essa contextualização histórica se dê de forma mais sensível do que racional. Cada uma das décadas, por exemplo, têm o seu homenageado (com exceção da última, muito próxima para que Cavalcanti se atrevesse a eleger uma única figura simbólica). Cazuza, por exemplo, é o grande personagem dos anos 80 e Glauber, dos 60. Outra brincadeira interessante feita na exposição - infelizmente apenas para a década de 70 - foi a interessante recriação da seleção por meio de dois outros critérios que não a seleção proposta pelos curadores convidados. Em duas maquetes perfeitas da sala de exposição, são apresentadas as obras que melhor representaram os anos 70 segundo as críticas publicadas nos jornais da época por Frederico Morais e Roberto Pontual. A outra, que diverge de forma mais significativa com a seleção proposta pelo Paço, foi feita segundo os preços alcançados pelo mercado. O que ocorre então é uma confirmação de talentos modernos, como Portinari e Di Cavalcanti, e uma preferência por obras mais palatáveis e decorativas, como as de Manabu Mabe e Aldemir Martins. Trata-se de uma grande idéia para uma exposição que pretende evidenciar o papel preponderante da economia na sociedade - e na arte - da segunda metade do século 20 e início do 21. "O economista de hoje é o arquiteto de ontem", resume Cavalcanti, fazendo uma remissão à exposição anterior feita pelo Paço. Na verdade, Caminhos é a terceira etapa de uma trilogia, organizada com patrocínio do BNDES, e que abordou a produção artística nacional desde a chegada da corte portuguesa. A primeira mostra, intitulada Brasil Redescoberto, ocorreu em 1999 e teve curadoria de Carlos Martins. A segunda, Quando o Brasil Era Moderno, foi em 2001 e estabelecia um diálogo entre as modernidades artística e urbanística. Todo esse esforço de reflexão também tem gerado uma série de publicações de referência para os interessados em pesquisar a história da arte no Brasil. A próxima delas será o catálogo de Caminhos, que deve ser lançado no próximo mês.

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