A arte como um jogo de espelhos

Coletânea reúne textos nos quais Milan Kundera aborda música, literatura, pintura ou teatro para definir a si mesmo

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

A epígrafe já diz tudo: "... encontro de minhas reflexões e de minhas lembranças, de meus velhos temas (existenciais e estéticos) e de meus velhos amores (Rabelais, Janácek, Fellini, Malaparte...)..." Como nos livros anteriores de ensaios escritos nos últimos 27 anos (A Arte do Romance, Testamentos Traídos e A Cortina), o escritor checo-francês Milan Kundera define-se diante de seus leitores a partir dos encontros e descobertas, de velhas e novas paixões literárias e artísticas. Como anota François Ricard nos textos de apresentação de sua obra na edição completa de sua ficção e ensaística em dois volumes papel-bíblia da ilustre Pleiade (2011), Kundera não faz "mélanges", ou seja, coletâneas de textos esparsos de circunstância com o objetivo de "salvar sua vida do esquecimento (...) é através dos outros que ele clareia a elaboração de seu pensamento e de sua arte".Lidos em sequência, os quatro livros ensaísticos comprovam a tese de Ricard. Aos 80 anos (Encontro foi originalmente publicado em 2009), Kundera provoca, conversa, repreende, cavouca desvãos sutis e até agora não percebidos nas obras mais díspares. Livre, leve e solto, enche pautas musicais manuscritas de notas e acordes com trechos de obras de seu compositor preferido, Leos Janacék; reclama de um biógrafo travestido de patologista mais preocupado com o "mau cheiro" no corpo do que com a obra de Brecht; saúda ironicamente o cinema, que lhe deu fama mundial com A Insustentável Leveza do Ser, num artigo a propósito dos cem anos de sua invenção, como uma nova técnica que se tornou "o agente principal de imbecilização"; e ataca o que chama de "listas negras", a "grande paixão das vanguardas já antes da Primeira Guerra Mundial".Depois das provocações, as ressalvas. Admite que Brecht sobreviverá a um mau biógrafo; que existe também o filme de arte, de "importância muito mais limitada que a do filme como técnica". Anota que num jantar reluzente em Paris, duas décadas atrás, um jovem falou de Fellini "com um prazeroso desprezo zombador" (melhor teria sido traduzir como zombeteiro). Diz que teve naquele momento uma sensação que não vivera nem nos piores dias da Checoslováquia estalinista, a de que "a arte desaparece porque desapareceu a necessidade da arte, a sensibilidade, o amor por ela".Os 26 textos, a maior parte publicada anteriormente, foram retrabalhados; adendos de 2008 foram acrescentados em alguns; todos foram organizados em nove partes. Entre os inéditos, o delicioso sobre as listas negras, explorando a mudança gratuita e muitas vezes maldosa dos malditos rankings das celebridades culturais "in" e "out"; e "A Pele - O Arquirromance", um dos mais extensos, onde ilumina Kaput e A Pele e saúda Malaparte como renovador do romance ao misturar ficção, crônica e jornalismo numa alquimia original. Encontro vale pelo que denuncia, mas sobretudo pela exposição de seus amores artísticos e angústias pessoais. No refinado ensaio de abertura, por exemplo, "O Gesto Brutal do Pintor: Sobre Francis Bacon" (1995), afirma que "quando um artista fala de outro, fala sempre (por projeção) de si mesmo e é este todo o interesse do seu julgamento". Refere-se a Bacon quando este fala sobre Beckett. Mas suas palavras aplicam-se, antes, a si próprio. O que o fascina nos retratos de Bacon é uma de suas preocupações básicas, ou seja, o limite de sofrimento, distorção ou repressão que o ser humano suporta sem perder sua identidade. No ensaio sobre o pintor, ele pergunta "até que grau de distorção um indivíduo continua sendo ele mesmo? Até que grau de distorção um ser amado continua um ser amado? Durante quanto tempo um rosto querido que se distancie na doença, na loucura, na raiva, na morte, continua reconhecível? Onde está a fronteira atrás da qual um ‘eu’ deixa de ser um ‘eu’?".O eixo de interesse deste livro rico e diversificado muda conforme o universo de identificação de cada leitor. No meu caso, a música. Mas, além de preferências pessoais, a música é nuclear em Kundera porque expõe a estrutura formal básica sobre a qual ele construiu toda a sua obra. Beethoven, Janacék, Stravinski, Schoenberg e Xenakis são objetos não só de finas observações - Kundera foi crítico de gravações de uma revista musical francesa nos anos 90 -, mas de suas mais caras convicções. Beethoven foi o primeiro, Schoenberg e Stravinski os derradeiros, entre os compositores que assumiram o passado para dar um passo à frente, algo na linha da superação dialética de Hegel no conceito de "Aufhebung" (superação e assimilação). O greco-francês Iannis Xenakis (1922-2001) foi o primeiro, segundo Kundera, a dinamitar a ponte com o passado. Não fez música nova, mas "uma outra música", apreendendo fisicamente os ruídos do mundo moderno e da natureza. Porém, seu modelo criativo, correndo em raia própria, é Janacék. Com ele, Kundera aplaca sua angústia de identidade: analisa suas instâncias criativas em dois ensaios, continuando, com estes encontros, outros anteriores, desde a infância, com Janacék. Mal comparando, Kundera é o "Adorno de Janacék". Comporta-se como Theodor Adorno, o maior divulgador da obra de Arnold Schoenberg. E acerta na mosca ao chamar por décadas a atenção para um dos maiores e menos conhecidos grandes compositores do século 20.JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DE NO CALOR DA HORA (ALGOL)Trecho"Janacék não tinha nenhum grupo de amigos ao seu redor. Adorno algum (...) estava lá para explicar a novidade de sua música que, assim, teve que avançar sozinha, sem nenhum apoio teórico, como um corredor de uma perna só."(A GRANDE CORRIDA DE UM HOMEM DE UMA PERNA SÓ)

UM ENCONTROAutor: Milan KunderaTradução: Teresa BulhõesCarvalho da FonsecaEditora: Companhia das Letras (192 págs., R$ 37)

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