A Antidiva

Sem afetações, a mezzo americana Jennifer Larmore fala sobre concertos no Brasil, discute o mundo da música e dá novos rumos para a carreira

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

 

Lady Macbeth. A ópera de Verdi baseada em Shakespeare será o novo desafio de Jennifer: muitas sopranos já mantiveram distância do papel, temendo sair machucadas do embate

 

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            A menina de 13 anos fascinou-se antes mesmo da música começar a soar. Perdida no meio do coral em Princeton, observou atenta o maestro de cabeça branca caminhar até a frente da orquestra. "Havia algo tão especial nele, o senso de humor com que olhava os músicos, o carisma, nunca me esqueci do impacto que foi vê-lo pela primeira vez." No programa daquela tarde, Beethoven. "Mas ali descobri na verdade Leonard Bernstein."

A pequena Jenny hoje é Jennifer Larmore, uma das grandes vozes do canto lírico internacional. Mezzo-soprano ? a mais gravada da história ?, ela conversa com o Estado na piscina do Copacabana Palace. Esteve no Rio durante a semana para cantar com a Sinfônica Brasileira a Sinfonia nº 1 de Bernstein; amanhã, estará na Sala São Paulo, onde repete o programa comandado pelo maestro Roberto Minczuk.

A peça tem o sobrenome "Jeremiah" ? faz alusão ao profeta e autor do Livro das Lamentações, escolhido por Deus para confrontar Judá e Jerusalém. A temática religiosa, porém, é mais veículo do que objetivo final. "Bernstein era um homem de teatro e quando canto esta música, entoando o texto do profeta, eu me sinto interpretando. É música forte, poderosa. Ele acredita no drama", diz.

Ao que tudo indica, Jennifer também. Sua carreira começou embalada em papéis do bel canto, afeitos à coloratura. Rosina, do Barbeiro de Sevilha, ela cantou 500 vezes ? e outras óperas nem tão conhecidas dos períodos barroco e clássicos foram aos poucos se somando a seu repertório, em especial na colaboração com o selo Opera Rara. "Eu amo Rosina", diz ela, com um sorriso no rosto. "Mas o que penso hoje é o seguinte. Já fiz tanta coisa! Cantei em todos os grandes teatros, com belos maestros, com colegas incríveis. Tenho orgulho da minha trajetória. E, depois de 25 anos de carreira, acho que posso começar a me dar o luxo de cantar aquilo que quero, de me arriscar um pouco. "

Os novos desejos são ambiciosos. Mas nada acontece de uma hora para outra. "O processo natural da voz é escurecer e ganhar força nos graves com o tempo. Mas a minha voz manteve também um brilho nas regiões agudas e de repente comecei a perceber notas que não sabia que era capaz de cantar. Acho que o Bernstein vai mostrar ao público o que quero dizer. Sinto minha voz mais forte, mais poderosa. Quero apostar nisso." Algum medo, receio? "Na verdade não. É um processo natural, não há por que brigar com ele. É como a coloratura. Você pode estudar, refinar a interpretação, mas ou você tem a voz ou não. Por conta disso, em vez de medo, o que sinto é animação."

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A "nova aposta" começou com papéis mais pesados e dramáticos como a Gertrude, no Hamlet de Thomas; ou a condessa da Lulu, de Alban Berg. "Essa ópera é uma viagem. Bem, preciso me corrigir. Ali tive medo sim. Mas acho normal. Você começa odiando a ópera e depois se apaixona. Aliás, acho que há três sensações ruins comuns a todos os cantores: ter que fazer e desfazer malas a todo instante; ficar tempos longe de casa; e achar que será incapaz de cantar Lulu", ela diz, rindo. "Mas foi ótimo."

Colegas. O novo foco de Jennifer é o papel da Lady Macbeth, na ópera de Verdi baseada em Shakespeare. Ela sabe que há muito em jogo. Muitas sopranos já mantiveram distância do papel, temendo sair machucadas do embate. "Mas as notas estão todas aqui e topei o desafio, assim como considero cantar também na Eboli, do Don Carlo. No fundo, eu me pego pensando: comecei com Monteverdi e agora estou me aventurando por Verdi, Wagner, Britten, Janácek. E não é só isso. Criei um grupo, o Opus Five, cuja proposta é experimentar com o repertório e dialogar de maneira próxima com o público. E além disso estou escrevendo um livro sobre a arte do canto, onde vou entrevisto meus colegas sobre o tema. Olha, há um futuro interessante para Jennifer Larmore."

Uma das atividades que lhe interessa bastante é dar aulas. Por enquanto, se limita a masterclasses. O que é possível ensinar a um jovem cantor em tão pouco tempo de contato? "(O lendário barítono americano) Sherril Milnes diz que minhas aulas são psicológicas", ri ela. "Mas o fato é que há muita exposição em se estar no palco. Você só entende isso quando passa pela experiência. Eu já fui uma jovem mezzo, com dúvidas, questões. O que tento fazer, portanto, é ajudar o aluno a se sentir seguro. E mostrar que ele não está sozinho no palco. O público quer gostar dele e vai participar do processo. O papel do cantor é justamente quebrar a barreira e se aproximar das pessoas, propor diálogo. É verdade que, no mundo aí fora, há muito cantor que gosta de criar uma atmosfera de terror, inveja, só consegue trabalhar assim. Mas eu não consigo. E tento mostrar isso aos alunos. Quero que eles me mostrem aquilo que têm. E aí colaboramos, trabalhamos juntos. Não tem porque ser diferente."

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