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200 anos de Victor Hugo, a voz da França do século 19

Por Agencia Estado
Atualização:

O inconveniente de Victor Hugo é que ele se assemelha muito a um gênio. Não há um único erro na construção de seu destino ao mesmo tempo grandioso e trágico, ao mesmo tempo subversivo e acadêmico. A mais bela obra de Victor Hugo é Victor Hugo. Victor Hugo é a estátua soberba de Victor Hugo. Em primeiro lugar, ele se livra de preencher a totalidade de seu século (o 19). Nasceu em 1802 e conseguiu não morrer antes de 1885. Como pai, escolheu um general do Império. Ainda criança, queima as etapas: aos 17 anos, ganhou um concurso nacional de poesia, o Jeux Floraux, organizado em Toulouse. Quando escreveu seu primeiro romance, Han d?Island, tinha 21 anos. Ele pressente que novos sentimentos sopram no século 19, depois do "abismo" da Revolução Francesa. Trata-se do "romantismo". Ele encabeça o romantismo e faz com que a apresentação de sua primeira peça, Hernani (1830), seja um alvoroço colossal, organizado com seus companheiros, o que o torna de um dia para outro universal, implacável. Ele tem o apetite de um gigante. Come as lagostas sem tirar sua carapaça, as laranjas sem descascá-las. E tem o mesmo apetite pelo poder, pelas honras. Salta como um tigre sobre tudo que está a seu alcance. Esse "revolucionário" da arte entra na Academia Francesa aos 38 anos. E como é monarquista, ele é "pair de France" em 1845. Poucos anos depois, foi eleito deputado em 1849 (após a sangrenta Revolução de 1848) na Assembléia Legislativa, no grupo dos "conservadores". Assim, aos 47 anos, já havia conquistado tudo: academia, deputado, "pair de France" e líder dos "românticos". Com uma obra considerável, com belos momentos: Notre Dame de Paris (romance), Les feuilles d?Automne e dez coletâneas de poesia. Cinco ou seis peças de teatro (como Le Roi S?Amuse, Lucrèce Borgia, Marie Tudor e, principalmente, Ruy Blas). No que diz respeito às mulheres, bela colheita. Sua esposa: a encantadora Adèle Foucher. Sua amante: Juliette Drouet. Outra amante: Léonie Biard. E é preciso somar as prostitutas das quais gostava, como muitos poetas (gosto que jamais abandonou). Crianças, enfim, que ele adora e muito bonitas. O que pedir mais? Está tudo no lugar. Ele anda nos trilhos. Basta acompanhar sua trajetória para ter certeza de que é o maior artista de sua época (como Voltaire e Chateaubriand antes dele), admirado por todos. É digno de ser sepultado um dia no Panthéon, o templo em que a França acolhe os restos mortais de seus grandes homens. E, na verdade, foi enterrado no Panthéon, mas ali chegou por um caminho inesperado. Em 1850, seu destino fez um ziguezague extraordinário. O deputado "conservador" Victor Hugo, na Assembléia, surpreende seus colegas: faz discursos, discursos de esquerda. Golpe - E eis que se apresenta a grande chance de Hugo: Luís Napoleão Bonaparte, o futuro Napoleão III, deu um golpe de Estado em 1851. E surge um Victor Hugo desconhecido, mais grandioso, mais genial, mais moderno que o primeiro. Hugo se exila. Para protestar contra o "golpe de Estado", embarcou para a ilha anglo-normanda de Jersey (mais tarde para a de Guernesey). Lá, escreve um primeiro panfleto, terrível, contra Luís Napoleão: Napoleão, o Pequeno. A partir de então, até sua morte, será o grande tribuno liberal, progressista, atento aos pobres, ao povo, à injustiça social e defensor tempestuoso, iluminado, da República. Napoleão III, que treme por ter um inimigo tão poderoso, procura seduzi-lo. Propõe-lhe, alguns anos depois, em 1859, a anistia e a volta à França. "Não", diz Hugo. Continua no exílio. Escreve Os Miseráveis e William Shakespeare, em seguida Os Trabalhadores do Mar. E sempre, sempre, poesias. A guerra de 1870 chega. A França é derrotada. Napoleão III é deposto. Hugo volta a Paris triunfante. Mas explode, então, a insurreição popular da Comuna, em Paris, que é esmagada pelos soldados da burguesia em um "banho de sangue". E Victor Hugo, com toda razão desgostoso, assume todos os riscos. Já tinha oferecido asilo ao "membros da Comuna". Deixa Paris, instala-se em Bruxelas, acolhe ainda "membros da Comuna" perseguidos pela polícia, é expulso da Bélgica. Quando Victor Hugo volta a Paris, expulso da Bélgica, em 1870, o país está calmo. O período aventureiro de Hugo (o exílio em Jersey, Guernesey e depois Bruxelas) terminou. Mas as idéias de esquerda que, aos 48 anos, tinham cativado esse ex-monarquista, esse burguês notável, ele jamais trairá. Sua determinação é inabalável. Até sua morte, será a grande voz da França e o defensor de todas as causas generosas. Dizem que sua brutal conversão à esquerda, após o golpe de Estado de Luís Napoleão, e depois da Comuna, fazem parte do "plano de ambição" que Hugo sempre aplicou literalmente. Foi sugerido que, para modelar sua formidável estátua, o desafio heróico, lançado pelo poeta solitário no rochedo de Guernesey ao soberano da França Napoleão III, servia ao objetivo narcísico de Victor Hugo. É injusto. É verdade que o primeiro Hugo, até 1851, é só um jovem sedutor, superdotado, um belo artista mas corrompido por uma ambição voraz e, em suma, bem "conformista". Ao contrário, o exílio em Guernesey impressionou - e mais ainda porque Hugo se deixou fotografar, deixou crescer barba branca de velho sábio, de profeta, e posa de boa vontade, nos negativos, de pé sobre um rochedo, diante do oceano impetuoso, diante de Deus, único personagem à sua altura... Mas, se planejado - ou por vaidade - temos de reconhecer que esse plano é soberbo e que Victor Hugo paga um preço alto: na ilha de Jersey, fica longe da velha Paris, capital do mundo, que ele adora. Fica sozinho, entre o barulho ameaçador do mar, as violências do céu, os hieróglifos das estrelas e seu gênio. A prova é severa. E dura anos. Além disso, jamais vai parar de combater em favor dos fracos, dos deserdados, dos proletários (uma palavra que ele ama). Não podemos em nenhum momento colocar em dúvida a piedade, a compaixão, o amor que ele tem pelos fracos, pelos oprimidos, pelas crianças. No Senado, luta pela abolição da pena de morte. Reivindica a anistia para os "membros da Comuna". Seus discursos são sublimes: estão entre seus mais belos textos (junto com os artigos reunidos com o título de Choses Vues, que são grandes obras-primas). Assim, em minha opinião, sua vida é realmente genial: inaugurada no conformismo, no "carreirismo", na ambição mundana e burguesa, ele quebra, de repente, em 1851, o suntuoso porta-jóias que tinha preparado para sua própria estátua, e se lança na tempestade política. E embora seja verdade que Hugo tem sempre um olho no efeito que ele produz, pelo menos a imagem desse "rebelde" absoluto, perdido em suas tempestades marinhas, preso à sua solidão, esquartejado entre o futuro e Deus, é mais nobre que o do "Pair de France", que só sonhava agradar aos poderosos. Ele descobriu, em 1851, ao mesmo tempo uma verdadeira "generosidade política", uma coragem indomável e provavelmente sua "verdade". Profeta - Falou-se muito sobre a vida, a ação, o personagem "do século". É preciso dar uma olhada na obra que acompanha essa vida "em passo de combate". Seus dons são imensos, suas visões magníficas e muitas vezes proféticas (inventou não só a "união européia", mas também o "euro"). Entendeu a dor inesgotável dos pobres, dos abandonados. Mas o que pensar de sua obra? Para o século 19 francês, ele foi "o poeta". Todos os alunos da escola laica (em plena expansão) aprenderam de cor suas estrofes. Sem dúvida, elas são de rara virtuosidade. Às vezes, são iluminadas de maneira fulgurante. Algumas coletâneas continuam belas (Les Chatiments, La Légende des Siècles, Les Contemplations). Ao lado disso, muito detrito. É verdade que, naquela época, a "modernidade poética" era realizada longe de Victor Hugo. Em primeiro lugar, na Alemanha, onde quase no mesmo momento explodiu o romantismo. Mas não se tratava do mesmo romantismo. E a voz de Hugo parece convencional ou bem grandiloqüente, se a compararmos ao esplendor quase invisível, no entanto incandescente, dos poetas alemães como Holderlin e Novalis. Depois, na própria França, na geração seguinte à de Hugo, vão se fazer ouvir duas vozes: em primeiro lugar, a de Baudelaire, verdadeiro "criador da modernidade" e que rejeita o Hugo das antigas retóricas. E sobretudo, o gênio absoluto, Rimbaud (sem falar de Lautréamont). Poderíamos dizer o mesmo a respeito dos romances. Pouco tempo depois de Hugo, surgem três romancistas geniais: Stendhal, Balzac e Flaubert. Diante de O Vermelho e o Negro ou de Madame Bovary, nem mesmo Os Miseráveis é comparável. No entanto, os romances e as peças de teatro ainda resistem aos ataques. Melhor do que a poesia. Um pouco exagerados de bons sentimentos, um pouco exagerados de filosofia "humanista", de estereótipos, mas uma generosidade criadora e sobretudo a capacidade rara de criar personagens tão fortes que se tornam mitos (o corcunda e Esmeralda de Notre-Dame de Paris; o bom presidiário Jean Valjean, que salva a pobre pequena Cosette no belíssimo romance que é Os Miseráveis). E, finalmente, há todo um lado da obra de Hugo, mantida durante longos anos na sombra e no silêncio, que se revela cada vez mais. Há cerca de 15 anos, avalia-se sua importância: são os desenhos. Durante toda sua vida, Hugo desenhou. Principalmente nos longos períodos de solidão de seu exílio. Desenhava com tudo o que lhe caía nas mãos, fuligem, graxa, manchas de tinta dobradas, impressões de rendas rasgadas, etc. São paisagens de tonalidade negra, a meio caminho do real e do sonho. De uma beleza intransponível. E de um modernismo que nem o surrealismo ultrapassou. Os burgos pendurados no flanco de montanhas abruptas, o mar, um navio no mar enfurecido (Hugo escreveu romances marítimos muito belos e exatamente foi possível nomeá-lo "o homem-oceano"), fortalezas perdidas, imagens apagadas da História e das cinzas, dos céus em delírio, o corpo desarticulado de um enforcado na ponta da corda... É aí, e sobretudo aí, que Hugo merece ser considerado como o grande autor romântico francês do século 19 e como o equivalente ou mesmo o "mestre" dos românticos da outra margem do Rio Reno. Última volta que nos reservou Hugo: a mais bela obra desse poeta, muitas vezes considerado o maior da França, não são seus versos. São seus romances, com toda certeza, algumas peças de teatro, mas, acima de tudo, seus discursos políticos, indignações proféticas contra a infelicidade dos pobres. E são, enfim, de maneira ainda mais enigmática, seus desenhos com fuligem, que ele fazia para distrair sua solidão e aos quais esse homem tão preocupado com suas posições não dava muita importância. Ziguezague do gênio: desenhos proféticos, que parecem desenhar os céus de nosso século 21, 200 anos após a morte do "grande vidente".

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