Woody Allen explica o uso do digital em 'Café Society'

Filme, que estreia nesta quinta-feira, 25, reabre a vertente judaica na obra do diretor

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em Cannes, em maio, na coletiva de Café Society – seu 14.º filme a integrar a seleção e o terceiro a inaugurar o maior festival do mundo; o anterior havia sido Meia-Noite em Paris, em 2011 –, Woody Allen fez o que soou como confissão, e até inesperada. Projetando-se nos personagens de Jesse Eisenberg e Kristen Stewart, disse – “Sempre me considerei um romântico, e o mesmo, vocês sabem, não posso dizer das mulheres de minha vida.” Nós sabemos, Woody.

A separação de Mia Farrow tomou aquela proporção e o documentário Wild Man Blues mostrou que Soon-Yi Previn é dura na queda – a forma como ela manda no marido é o que mais ressalta naquele retrato do artista.

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A coletiva esteve à altura do filme, o melhor de Allen em muito tempo, incluindo Blue Jasmine, que deu o Oscar para Cate Blanchett, e que já era muito bom. Café Society reabre a vertente da família judaica na obra de Allen, remete à ‘jewish mummy’ de Contos de Nova York e à família meio disfuncional de A Era do Rádio. O personagem de Eisenberg chamou-se Bobby e se cansou de Nova York – do pai joalheiro, da mãe do lar e do irmão mafioso. Vai para Hollywood, onde tio Phil é um renomado agente e convive com as estrelas. “Janta com Fred Astaire e Ginger Rogers”, diz a mãe. “Estou impressionado”, retruca o pai, mas não está. Tio Phil tem uma secretária, Vonnie/Kristen, a quem encarrega de mostrar Hollywood ao sobrinho. Os dois se envolvem, mas ela já está enrolada e Bobby volta para Nova York, para seguir a vida. Abre um night club com o irmão criminoso, o lugar faz o maior sucesso.

Anos mais tarde, Bobby e Vonnie se reencontram, mas é tarde para todo mundo. “A vida”, reflete o garoto, “é uma comédia escrita por um autor sádico de comédias.” E a mãe tem a grande frase, ao reescrever o ‘carpe diem’ de Sociedade dos Poetas Mortos, obra cultuada de Peter Weir com Robin Williams. “Viva cada momento como se fosse o último, porque um dia vai ser”, a mamma repete. Em Cannes, Woody Allen reafirmou que é sempre um prazer voltar ao festival, mas fora de concurso. “Competição é bola para esporte, não arte. Quem pode dizer que um Rembrandt é melhor que um El Greco, que um Matisse é melhor que Picasso? É muito subjetivo.” Ele também fez o maior elogio à dupla principal. Disse que, se fosse mais jovem, poderia ter feito o papel de Jesse. “Mas eu o teria interpretado como um comediante. Jesse é um ator e o deixou muito mais complexo.” E Kristen – “Precisava de uma atriz que pudesse ser convincente como uma pequena secretária de Nebraska e depois vestir joias e peles como se tivesse nascido para isso.” Kristen, que virou estrela na série Crepúsculo e hoje faz escolhas ousadas no cinema de autor, disse que precisou fazer teste (audition) para conseguir o papel. 

“No início, achei que seria difícil me entrosar, mas, no set, encontrei rapidamente a entonação. É o milagre de Woody. Os filmes dele são como são por causa dessa entonação particular.” Ator, autor, diretor. Só no cinema, são mais de 50 anos de estrada, desde que estreou como ator e roteirista em O Que É Que Há, Gatinha?, de Clive Donner, fazendo ‘escada’ para Peter Sellers e Peter O’Toole. E os livros e peças – quando não está incorporando e popularizando conceitos de filósofos viscerais, Woody possui o segredo de mesclar a mundanidade com grande arte. “Tenho vivido na mira dos paparazzi. Não é a parte mais difícil do que se considera ser ‘celebridade’. Me acostumei. Não incomodam mais.”

Pode ser que os paparazzi não incomodam, mas as (eternas) acusações de estupro, com certeza, sim. O último a alfinetar Allen foi Ronan Farrow, filho de Mia. Não, não foi o último. Na cerimônia de inauguração de Cannes, com o próprio Woody na plateia, o apresentador Laurent Lafitte bateu pesado. Em francês, com direito a legendas em inglês num telão, disse como era bom que o diretor esteja conseguindo fazer tantos filmes na Europa, enquanto nos EUA até hoje não foi julgado por estupro. Houve na afirmação certa ironia, considerando-se os percalços que Roman Polanski enfrenta com a Justiça dos EUA por uma acusação de estupro na qual até a presumível vítima já o absolveu. Lafitte, vale lembrar, é um dos intérpretes de Elle, o longa sensação de Paul Verhoeven este ano, com Isabelle Huppert na pele justamente de uma estuprada.

À parte esses constrangimentos, a coletiva foi, acima de tudo, um bate-bola entre Woody e o diretor de fotografia Vittorio Storaro, um dos maiores do mundo. Allen trabalhou com fotógrafos imensos – Gordon Wills, Carlo di Palma, Sven Nykvist. Storaro iluminou para Francis Ford Coppola e Bernardo Bertolucci. Somente Oscars, foram três – por Apocalypse Now, Reds e O Último Imperador. “Sempre quis trabalhar com ele, e desta vez a agenda de Vittorio estava livre e deu certo.” Até aqui renitente no uso da película, Allen adentra o digital com Storaro. “No cinema, precisamos utilizar a linguagem das imagens para contar a história, e o digital é a linguagem do progresso”, reflete o fotógrafo. “Com Vittorio, descobri que o digital pode ser muito bonito. E não senti nenhuma mudança no set, talvez na pós-produção”, acrescenta o diretor, que aprovou o processo.

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Algumas cenas de interiores são exemplares. A direção de arte de Santo Loquasto valoriza sempre os tons amarelados, puxando para o escuro. Um mestre do bege. Jesse e Kristen conversam no que parece luz de vela, e é. “A luz natural realça o intimismo”, diz o fotógrafo. O final, um dos mais belos de Woody Allen, remete ao de Clamor do Sexo, de Elia Kazan, de 1961, um dos mais belos do cinema – nada trará de volta o esplendor do sol na relva, a juventude perdida de Natalie Wood e Warren Beatty. Uma sombra passa no rosto de Eisenberg, no de Kristen, que comemoram o Ano Novo separados no espaço. O que é, pergunta a mulher dele, o marido dela? “Nada”, respondem. Poderiam dizer – Tudo.