Woody Allen, cada vez mais engraçado

Estréia nesta sexta-feira na cidade o filme O Escorpião de Jade que traz o cineasta de volta em seu melhor estilo e atuando no papel principal ao lado de belas como Helen Hurt e Charlize Theron

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Pode ser que Woody Allen não seja mais tão profundo, mas ninguém pode negar que esteja cada vez mais engraçado. Se duvidar, confira este O Escorpião de Jade que está entrando em cartaz na cidade. Você irá ver um Allen livre, leve e solto, empenhado apenas naquilo que sabe fazer melhor - humor. E humor inteligente, sofisticado sem necessidade de ostentação de QI. A trama usa um recurso cômico dos mais manjados - a pessoa hipnotizada, que faz as coisas e depois não se lembra de nada. Allen é C.W. Briggs, detetive de uma companhia de seguros, e que tem em seu currículo a recuperação de um Picasso que desaparecera. Mas seu reinado passa a perigar com a contratação de Ann Fitzgerald (Helen Hunt), gerente que propõe novos métodos de organização para a empresa. Ela é esse tipo de profissional, amado pelos patrões, que gosta de cortar custos e funcionários. Briggs é um velho detetive, auto-suficiente, avesso a novidades. Ann e Briggs se detestam, de forma nada cordial. Numa festa da firma, um mágico hipnotiza os dois e faz com que se acreditem perdidamente apaixonados um pelo outro. Mas o hipnotizador guarda para si um trunfo na manga. Sob o estímulo de uma determinada palavra mágica, Allen passará a agir sob o seu controle, e uma vez desperto irá ignorar o que fez. Muito útil, pois esse detetive especializado em furtos poderá ser usado justamente para furtar. No caso, afanar jóias de grande valor, entre elas o escorpião do título. O recurso cômico faz com que Briggs passe a investigar crimes que ele mesmo cometeu. E viver aventuras que não havia previsto - sendo que conhecer o avião Charlize Theron certamente não é das menores. Com O Escorpião de Jade, além de continuar investindo na linha da comédia pura, Allen dialoga com algumas tradições do melhor cinema americano, no caso a do filme noir. Um diálogo cômico, desmistificador, que corrói a seriedade do tipo consagrado por Humphrey Bogart, um dos ícones de Allen. Briggs é um Sam Spade trapalhão, pouco à vontade diante de mulheres desinibidas e, no fundo, nem um pouco brilhante. Mas é a soma de suas insuficiências que faz o seu encanto. E, claro, há uma inteligência de fundo nesse detetive boboca, que acabará por conquistar não apenas a platéia como uma mulher em princípio refratária a ele. Allen é um mestre nesse tipo de autoparódia. Construiu a imagem de fragilidade para si mesmo, para seus personagens, e trabalha bem com o estereótipo. Sabe mantê-lo e desconstruí-lo ao mesmo tempo. Quer dizer, sabe que o público deseja ver um Woody Allen frágil e limitado, sendo que esse mesmo público sabe que ele não é nada disso na realidade. É, sim, uma pessoa extremamente bem-sucedida, que controla com eficácia a sua vida profissional e pessoal. Pode-se intuir que seja também muito bem resolvido mentalmente, por causa, ou talvez apesar das incontáveis horas de vôo em divãs de analistas. Pelo menos, para a felicidade dos seus fãs, Allen tem sabido administrar sua angústia e diluí-la em doses generosas de humor. Basta lembrar que desde o doloroso fim do casamento com Mia Farrow, ele já dirigiu filmes tão engraçados como "Poderosa Afrodite", "Desconstruindo Harry", "Trapaceiros" e agora "O Escorpião de Jade". Um longa-metragem por ano, mantendo invejável nível médio de qualidade, e paradoxalmente sofrendo para encontrar público em seu país de origem. Já se disse que Woody Allen é intelectual demais, sofisticado demais para ser apreciado nos EUA. Talvez seja isso, mas é de estranhar que nem mesmo um público, digamos, mais seleto, assista aos seus filmes lá. Talvez seja um agravante o fato de que, mesmo na mais despretensiosa comédia, Allen não deixe de alfinetar com precisão aquilo que o desagrada no modo de vida americano. Ou seja, quase tudo, com exceção da música e da atmosfera de Manhattan, pré-11 de setembro.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.