Viúva do cineasta Jacques Demy comenta Pele de Asno

Ela e o filho ajudaram na restauração do filme, que voltou ao cartaz em São Paulo, no Reserva Cultural

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Por Agencia Estado
Atualização:

Há um culto a Jacques Demy. A oficiante é sua eterna viúva, Agnés Varda, que, paralelamente à própria carreira, costuma se lançar numa série de projetos cujo objetivo é manter viva a memória de Jacquot, como ela o chama. Agnés está por trás do projeto de restauração de Pele de Asno, ainda que o restaurador do filme que Demy realizou por volta de 1970 tenha sido o filho de ambos, Thomas. De Paris, ela respondeu, por e-mail, às perguntas enviadas pelo Estado. Admite que é a pessoa mais qualificada para falar de Demy, porque sabe "duas ou três coisas sobre ele" que o restante do mundo desconhece, mas não quer ser a sacerdotisa do culto nem impor uma só visão da obra do ex-marido. "Cada um deve descobri-lo e interpretá-lo como quiser. Jacquot foi um eterno menino, encantado com seu instrumento, o cinema. Compartilhar de sua visão pode ser uma experiência estética e humana enriquecedora para todos nós." Pele de Asno é contemporâneo do livro de Bruno Bettleheim, A Psicanálise dos Contos de Fadas. O filme é tão psicanalítico que sugere quase uma filiação. Demy conhecia o livro de Bettleheim? Foi influenciado por ele? Jacques conhecia, sim, o livro. Não me lembro mais se o comprou ou se foi um amigo que lhe deu. É possível que o livro o tenha influenciado, mas foi no sentido de consolidar idéias que ele já vinha tendo há tempos. Pois há muito que Jacques tinha o desejo de filmar Pele de Asno. Era atraído pela história e percebia nela um potencial muito grande para usar o universo infantil dos contos de fadas e, ao mesmo tempo, falar para o público mais adulto. Delphine Seyrig, como a fada, interpreta uma canção que diz, sugestivamente, que toda donzela deve desconfiar de seu pai. É uma espécie de síntese dramática do filme, expondo seu tema, que é o incesto. Demy era consciente disso? Do incesto? Por certo que sim, posto que todo filme gira em torno dele. Do valor conceitual atribuído à canção? Sinceramente, não me lembro, mas sei que ele dava grande importância à letra, burilando cada palavra com o compositor. E Jacques queria que a fada também fosse atraída pelo rei. Ele pedia a Delphine para atuar de forma coquete, muito feminina, queria que o espectador percebesse sua vulnerabilidade amorosa em relação ao personagem de Jean Marais, mesmo que seu objetivo fosse proteger Pele de Asno (Catherine Deneuve). Démy foi muito criticado por seu lirismo, mas foi um cineasta adiante de seu tempo. Um filme que muita gente na época chamou de fantasioso e até mentiroso como Os Guarda-Chuvas do Amor, possui hoje uma força crítica muito grande contra a burguesia e é um dos raros da produção francesa da época a encarar a guerra da Argélia. Concorda com isso? Concordo integralmente, mas não se trata do que eu penso ou do que você pensa. As pessoas devem ter liberdade para interpretar os filmes. Só precisam de um pouco de informação sobre a época e as intenções do autor. Jacques pode ter sofrido incompreensões ao longo de sua carreira, mas hoje é um autor consagrado e que ocupa o posto que merece na história do cinema. Ele foi sempre crítico da burguesia. Pode-se, mesmo, dizer que o universo mágico de Jacquot é essencialmente antiburguês. O Flautista de Hamelin foi outro filme que ele fez baseado numa história infantil e que também possui camadas que só o público adulto pode entender. A gênese desse projeto foi a mesma de Pele de Asno? Não, porque Pele de Asno foi um projeto que Jacques carregou durante anos e que lutou para consolidar. O Flautista lhe foi proposto pelo produtor inglês David Puttnan, que havia visto e gostado da adaptação de Perrault. Mas se Jacques aceitou foi porque o Flautista lhe permitia desenvolver temas e o estilo que eram os dele. Jacques foi sempre um grande fã dos contos de fadas, que nunca se cansava de ler. Era atraído tanto pelos aspectos mágicos dos relatos, quanto por aquelas camadas mais escondidas que toda história carrega. O Flautista desenvolve temores infantis e também trata do problema da acumulação da riqueza. Os pais se recusam a pagar o flautista e, por isso, se arriscam a perder os filhos. Creio que o que David (Puttnan) queria foi o que Jacques lhe deu - para lá do conto de fadas, o tema de O Flautista é o anti-semitismo. Há sempre um cuidado visual muito grande no cinema de Demy. Ele teve uma base de pintura na origem de seu trabalho? Jacques entendia de tudo. Pintura, cenografia, vestuário, música.Ele pensava no filme como um todo, procurando integrar todos os seus elementos, os dramáticos como os visuais e sonoros, buscava uma síntese de todas as artes. Foi um visionário que sempre viveu com os pés na realidade. Daí a permanência e riqueza de seu cinema. É mágico, não alienante . Pele de Asno (Peau d´Ane, Fr/1970, 100 min.). Aventura. Di. Jacques Demy. Livre. DUBLADO: Reserva Cultural - 19h40. Cotação: Bom

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