Visconti dá adeus ao neo-realismo em "Belíssima"

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Por Agencia Estado
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Na melhor cena de Belíssima, que reestréia nesta sexta-feira, em cópia nova, Luchino Visconti coloca Anna Magnani diante do espelho. Ela se pergunta "O que é representar?" Imagina o que seria colocar-se na pele de outra pessoa e confessa que seria incapaz de fazê-lo. Representar está além de suas possibilidades. A afirmação vale para a personagem Madalena, claro, não para a atriz, e não deixa de ser uma ironia que o grande Visconti tenha recorrido justamente a Magnani, considerada a maior da Itália, um mito da arte de interpretar no país. Belíssima é de 1951 e dois anos depois Visconti recorreu de novo a Anna, colocando-a no episódio que fez para o filme-múltiplo Nós, as Mulheres, que tinha entre os demais racontos o dirigido por Roberto Rosselini para sua então mulher, Ingrid Bergman. Belíssima possui a fama de ser um Visconti menor. O menor tem de ser colocado entre aspas. É um filme de transição, isso sim. Com Ossessione, em 1942, Visconti antecipou o neo-realismo, o movimento que floresceu na Itália devastada pela guerra, e com La Terra Trema, de 1947, primeira parte de uma trilogia nunca concluída, deu ao movimento outro de seus títulos famosos. Mas quando fez Belíssima, nem a Itália nem o neo-realismo eram os mesmos. O país mudara e, sob o impacto do Plano Marshall - por meio do qual os EUA injetaram dinheiro na Europa Ocidental, para conter o avanço comunista - reerguera-se, economicamente. Como conseqüência, o neo-realismo, como expressão artística e cultural, tinha de mudar e efetivamente mudou. À preocupação social do começo do neo-realismo superpôs-se uma preocupação de ordem mais existencial. Vittorio De Sica e Roberto Rosselini, ambos vindo do neo-realismo clássico, mudavam suas preocupações e até o método. Michelangelo Antonioni, ingressando na ficção, após uma série de curtas e documentários, e Federico Fellini começaram a fazer aquilo que os críticos chamaram de realismo interior, uma diversificação do modelo inicial do neo-realismo. Visconti também mudou e em 1954 lançou Sedução da Carne, um marco não só do seu cinema, mas de todo o cinema dos anos 50, substituindo o neo-realismo por um tipo de melodrama permeado de elementos históricos que teria desdobramentos na sua carreira futura. Mas até Rocco e Seus Irmãos, seu clássico de 1960 - também relançado em cópia nova pela Pandora -, na verdade até Vagas Estrelas da Ursa, em 1965, quando descobriu as possibilidades da lente zoom e mudou seu método, Visconti fazia o que ele próprio chamava de cinema ´antropomórfico´, dirigindo a câmera basicamente para o corpo dos atores. Nesse sentido, Belíssima não é uma obra menor e até se reveste de grande importância na obra do diretor. Na história Anna Magnani faz uma mulher pobre que sonha dar adeus à miséria transformando a filha pequena em estrela de cinema. Um famoso diretor, interpretado pelo diretor Alessandro Blasetti, procura uma estrela mirim para uma nova produção. Inscrevem-se centenas, milhares de candidatas. Anna tenta empurrar a carreira da filha. Há 50 anos, o sonho do cinema, a promessa de virar uma celebridade, já mudava a vida das pessoas. Um dos dogmas do neo-realismo e, talvez, ´o´ dogma era a forma como os diretores mais representativos do movimento (De Sica, Rosselini, o próprio Visconti em La Terra Trema) recorriam a atores não-profissionais, para dar veracidade aos dramas das pessoas comuns, do povo, cujas vidas encenavam diante da câmera. É o que faz Blasetti dentro do filme de Visconti, procurando a garota para uma nova filmagem. Mas Visconti centraliza o filme na mãe e não é uma atriz qualquer - na mítica Anna Magnani. Em Belíssima, portanto, ele dá seu adeus ao neo-realismo e faz, numa estrutura romanesca, a autópsia do movimento, celebrando o divismo. Visconti fez isso conscientemente. Disse, certa vez, que o tema de Belíssima é Anna Magnani. Para o espectador que acaba de (re)ver Rocco, há um aspecto fundamental que precisa ser ressaltado. Apesar do que disse o próprio Visconti, o tema de Belíssima é o eterno, muitas vezes cego, amor materno, para o qual o filho é belo, talentoso e sempre se destina a grandes coisas. A pequena Maria Cecconi não é bela, mas sua mãe, com o olhar transfigurado pelo amor, diz que ela é ´belíssima´. Não é só amor, é também ambição egoísmo e a mãe de Belíssima termina antecipando a genial Katina Paxinou de Rocco, pois Rosario Parondi usa o mesmo discurso. Ela também diz que os filhos são belos. Sonha um futuro melhor para eles (e para ela). Rompe com a estrutura feudal da Lucânia e vai tentar a sorte em Milão, mas na cidade grande a família se desintegra. O sonho de Belíssima vira tragédia em Rocco. Um detalhe final - memorabilia, mas não irrelevante, para viscontimaníacos de carteirinha. Num filme sobre a ambigüidade do amor materno, não deixa de ser significativo que o grande artista tenha colocado duas referências a sua mãe. Quem conhece o mínimo a vida de Visconti sabe quanto Carla Erba foi importante para ele. Nunca deixou de sentir sua falta, até que ele próprio morreu. Carla descendia de uma família de milionários. A mãe possuía o maior império farmacêutico da Itália. Casou-se com o pai de Visconti, um aristocrata milanês. Separam-se e isso nunca chegou a se constituir numa tragédia para os filhos. Há uma farmácia em Belíssima. Chama-se Erba. E numa cena Madalena vai comprar tecido. A funcionária oferece-lhe tule. Ela pesa, olha, acaricia. Desiste porque é caro. Carla Erba adorava revestir-se de tule nas noites em que, vestida de gala, freqüentava as estréias do Scala. Visconti também envolveu Dominique Sanda em tule para homenagear a mãe em Violência e Paixão. Ele sempre se considerou o filho de Carla. Gostava de achar que herdou o temperamento dramático e o talento dela.

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