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'Violência em Família' é ensaio sobre crimes domésticos

Produção australiana dirigida por Paul Goldman é bem interpretada e se mostra criativa em sua proposta

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Nas primeiras cenas, vê-se a cerimônia de um funeral no interior de um serviço crematório. Sentada em uma das filas, uma garota parece não se importar muito com o que está acontecendo à sua volta. O celular acusa o recebimento de uma mensagem. Ela ri. Vemos o que está escrito na telinha: "Vamos transar?" Essa mistura de expectativas em torno de uma situação formal dá mais ou menos idéia do clima deste Violência em Família, produção australiana dirigida por Paul Goldman. Veja também: Trailer de 'Violência em Família'  A partir desse início, o filme entra em um longo flash-back, que irá nos reconduzir, quase ao final, à cena do serviço funerário, e então será possível entender quem é o morto, quem é a moça e por que ela recebe com tanta alegria aquela mensagem insólita para o tipo de ambiente e situação em que se encontra. Katrina (Emily Barclay) é o nome da garota. Dezenove anos, um filho para criar, mora com um pai com quem não se dá bem. A mãe abandonou a família, o irmão matou alguém num assalto e pegou prisão perpétua e ela, de seu, tem um corpinho bonito e muita disposição para usá-lo em causa própria. Em suma, é uma cabeça de vento em uma situação desfavorável - o subúrbio, como diz o título original. Não que o filme aponte para causas sociais que levariam ao crime de maneira determinista. Afinal, estamos numa sociedade de Primeiro Mundo, na qual não existe miséria, pelo menos não da maneira que nos é familiar. Mas mesmo lá existem dificuldades de sobrevivência, vida dura e, claro, muita ambição, pois afinal trata-se de uma sociedade competitiva. Tudo isso está no caldo de cultura do filme e é mostrado muito bem, na contraluz da narrativa, pela direção inspirada de Goldman. Essa direção é o ponto alto do filme, ao lado de um elenco jovem e bastante empenhado. No entanto, aqui e ali Goldman apela para expedientes talvez desnecessários, como se quisesse experimentar com a linguagem cinematográfica e não soubesse como dosar as coisas para que se equilibrem. Por exemplo, naquela cena de abertura, quando uma mensagem é transmitida de celular para celular, vemos o signo de uma pequena carta deslocar-se pelo ar, entrar pela porta da igreja até chegar ao telefone de Katrin. Esse tipo de recurso de animação se repete ao longo do filme e não se pode dizer que contribua para torná-lo melhor. Goldman talvez precisasse ter um pouco mais de confiança nas virtudes da simplicidade. Mas, como se sabe, dá um trabalho danado ser simples. Mas são pequenos problemas num filme que flui muito bem, de maneira geral. Há, a seu favor, uma boa compreensão das motivações da juventude, ou pelo menos, de certa juventude. Como ela não tem um passado e também não vê com clareza qualquer futuro, enxerga o presente com uma espessura desmedida. Importa gratificar-se, ao máximo, no mais curto espaço de tempo, sem qualquer tolerância para com o esforço ou o adiamento da satisfação. Essa entrega pulsional é o que bloqueia qualquer tolerância à frustração e, parece compreender Goldman, pode levar ao crime. Quer dizer, ao curto-circuito social entre o desejo e a sua satisfação. Precisa-se das coisas imediatamente, não há como obtê-las, pois não existe dinheiro disponível; este implica em trabalho, o que leva tempo para a acumulação, adiamento, etc. Procura-se então um atalho. O filme fecha todas as pontas desse processo e, é bom que se diga, sem qualquer pretensão ao didatismo. Mesmo porque, e esse é outro aspecto da coisa, tão importante quanto, Violência em Família não se fecha em qualquer mensagem moral. Muito pelo contrário. Como irá descobrir o espectador, Goldman usa uma estratégia de choque que, como tal, visa a produzir efeitos. Aceita conduzir a história com os olhos presos numa protagonista que, ele sabe, jamais irá despertar grande simpatia no público. Mas, ao mesmo tempo, não pretende fazer dessa anti-heroína uma vilã. Prefere deixar que ela flutue em sua ambigüidade. De qualquer forma, apesar de frágil, Katrin é a personalidade forte em seu meio. Domina um namorado um tanto indeciso e exerce poder (e fascínio) sobre um pobre rapaz mentalmente perturbado. Inútil dizer que ela própria se converte em vítima de seus atos, mas talvez não da maneira como o espectador esperaria. E esperar uma solução de conflitos "limpa", com a devida punição dos culpados, como em geral ainda acontece no cinema mais convencional, talvez fosse a maneira mais fácil de falsificar essa história que se deseja bem realista. Como se sabe, no "mundo real" as coisas não são como no cinema e muitas vezes os transgressores ficam impunes e se dão bem. Pode não ser muito edificante como "mensagem". Mas o cinema não pode ser responsável pela transmissão de mensagens edificante. E nem todo filme é um apólogo. Violência em Família, no máximo, pode ser considerado uma fábula moral, mas às avessas.

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