‘Vida Selvagem’ revê história de pai que some com filhos por 11 anos

Filme de Cédric Kahn com Matthieu Kassovitz é baseado em um fato real

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Por Luiz Zanin Oricchio
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Vida Selvagem, de Cédric Kahn, começa de modo alucinado. Uma mãe pega seus filhos e, na ausência do pai, empreende a fuga de casa. A “casa”, diga-se, é um trailer onde vive a família, sempre em trânsito e em mudança. Com a ajuda de uma amiga, ela sai correndo, puxando os garotos pelas mãos, pega carona e consegue na última hora alcançar um trem com os meninos. Vai buscar refúgio longe dali, na casa dos pais.

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O marido, Paco (Matthieu Kassovitz, diretor de O Ódio) nada tem de monstruoso. Pelo contrário, revela em primeiro lugar seu aspecto simpático. É uma espécie de hippie tardio, que fala contra a sociedade de consumo e pretende viver na periferia de um modo social que despreza. Intitula-se um marginal, sem mais nem menos. Num primeiro momento, aliás um longo momento, a mulher, Nora (Céline Sallette), é sua cúmplice. Ela traz um filho do primeiro casamento e tem mais dois com ele. Depois se cansa. Acha que é chegada a hora da estabilidade. O marido não concorda. E quer os filhos com ele. A história é baseada num fato real. Um incrível e longo fait divers sobre o homem que escapou com os filhos de 6 e 7 anos de idade e conseguiu se esconder com eles durante 11 anos, com a polícia em seu encalço. Quando foi apanhado, as autoridades notaram, com espanto, que ele não havia se exilado com as crianças em algum país exótico. Estivera o tempo todo na França, vagando por comunidades alternativas e vivendo do trabalho pastoril, plantando a própria comida e criando galinhas.

O que se pode dizer bem de Cédric Kahn é sobre sua honestidade intelectual, uma certa solidez de concepção, como se pôde ver em O Tédio, seu outro filme lançado no Brasil. Neste, não deseja enaltecer um modo de vida e nem demonizá-lo. Trabalha com nuances e conflitos.

É, por assim dizer “objetivo” na maneira como aborda uma proposta alternativa em tese generosa e começa a mostrar suas fissuras internas. Não de maneira forçada, mas por que elas existem mesmo. Nora é o primeiro sinal de que algo não vai bem. Ao desistir de um tipo de vida errante, ela não abandona os filhos. Transforma-se em figura midiática ao encarnar a figura da mãe desesperada, separada dos seus filhos pequenos e que faz tudo para encontrá-los. No filme, ela aparece pouco. Nas cenas iniciais e nas finais. Mas é sempre uma persona implícita, subentendida, em especial na lembrança das duas crianças.

O principal da ação se concentra no trio – pai e dois filhos, em sua vida errante. E é sutil a transformação daquilo que parecia suprassumo da liberdade em algo próximo de uma prisão sem grades. De forma previsível, isso acontece quando os meninos crescem e se tornam rapazes. De certa forma, passa a valer a máxima “pais malucos, filhos caretas”. Mas não é apenas isso, embora também o seja. Se uma fase de crescimento e busca de autonomia parece depender da oposição a um modelo primeiro aceito como ideal, Vida Selvagem contém outras possibilidades de reflexão.

Por exemplo, sobre a dificuldade, senão a impossibilidade, de se colocar por completo “à margem” do mundo, como deseja Paco. Essa atitude pode ter muito de voluntarista. Ele mesmo não é uma figura passiva, “da paz”, que tudo aceita e deixa a vida correr. É antes o contrário. Da maneira como o imagina Cédric Kahn, e tão bem o interpreta Kassovitz, Paco é bastante ativo e chega a ser agressivo na defesa dos seus pontos de vista. Quando ameaçado, pode mesmo se tornar desagradável para quem o rodeia e por seus próprios filhos.

No entanto, é como se a sociedade mais ampla, o “sistema”, como diz Paco, e diziam todos os alternativos daquele tempo, se infiltrasse sutilmente com seus valores egoísticos e corroesse as bases de quem procura a ele escapar. Como se não houvesse, em toda a sociedade, nem mesmo em seus rincões mais remotos, algum local em que se possa de fato estar fora de tudo. Quer dizer, da economia, das relações humanas menos amigáveis e, por fim, da lei e da justiça.

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Vida Selvagem é, de certa forma, uma discussão sobre as utopias, baseada numa história real.

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