Vetado no Quênia, filme 'Rafiki' mostra perseguição a duas garotas que se envolvem amorosamente

Longa teve repercussão internacional e foi exibido no Festival de Cannes

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Rafiki, drama amoroso queniano, foi proibido em seu país de origem. No caso, porque a história se desenvolve em torno de um romance gay e as alusões à homossexualidade não passam pelo crivo da censura no Quênia. Isso não impediu que o filme da diretora Wanuri Kahiu tivesse repercussão internacional, tendo participado de mostras e festivais mundo afora – foi mostrado até mesmo no badalado Festival de Cannes.

Cena do filme 'Rafiki',de Wanuri Kahiu Foto: Olhar Distribuição

PUBLICIDADE

Aqui mesmo, no Brasil, antes de entrar no circuito comercial, ele foi exibido numa recente mostra de cinema de países africanos no Cinesesc. Pode-se até dizer que, por ter sido censurado, e ainda por cima por uma questão sexual, tenha chamado para si uma curiosidade inusitada pelo simples fato de a censura ser categoria tornada exótica no mundo dito democrático. 

De fato, não haveria nada a censurar na história de duas garotas, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyva), que se conhecem e, apesar de serem muito diferentes entre si, iniciam uma forte amizade. Sentimento que evolui mais tarde para uma relação amorosa. A amizade, de início, já é apimentada pelo fato de os pais das garotas serem rivais na disputa pela prefeitura. As famílias inimigas dão à história, pelo menos em certa altura do seu desenvolvimento, tonalidade que lembra uma espécie de Romeu e Julieta africano e entre duas mulheres. Mas a semelhança não vai muito adiante. 

Nota-se que interessa mais à diretora uma descrição bastante vívida do ambiente em que o enredo amoroso se desenvolve que alusões a Shakespeare. Daí o cuidado em deixar a câmera captar detalhes da vida cotidiana no Quênia, como se adicionasse ao seu longa ficcional o grau de verdade conferido pelo registro documental. Agora trabalhando em Hollywood, a diretora disse que o banimento do filme foi “uma violação de direito constitucional de livre expressão”. “É a nossa voz e ela precisa contar essas histórias.” Wanuri acrescenta que vivia em Nairóbi, cidade cosmopolita e que tinha muitos amigos e amigas gays e lésbicas. E que fizera o filme representando essas pessoas que se sentem oprimidas em seu país de origem. 

Daí o desenvolvimento da história, em que Kena e Ziki serão obrigadas a escolher entre a submissão à repressão social ou a fuga, pura e simples. A questão de sair ou não está sempre presente em países autoritários, que não oferecem às pessoas condições de desenvolvimento livre. O Quênia não parece ser exceção à regra. 

Pode-se dizer que Wanuri não tenta demonizar seu país nem isentá-lo da culpa de não permitir a diferença. Não propõe um olhar miserabilista ou folclórico em relação à África. Antes, evita prejulgamentos e deixa que uma singela história de intolerância fale por si. Ela é suficientemente eloquente para significar aquilo sobre o qual as pessoas de bom senso estão de acordo: ninguém tem nada a ver com decisões de ordem pessoal, incluindo o comportamento sexual. Não se tratando de questão de Estado, deve ser circunscrito à esfera íntima de seus participantes. 

Mas há um ponto interessante destacado pela diretora. A proibição da homossexualidade pode emanar do Estado, mas – o que é mais grave – é incorporado pela população sob a forma do preconceito. Dessa forma, é o “povo” que zela pela observância dos “bons costumes”, dispensando qualquer ação policial do Estado. Esse policial anônimo, presente na cabeça de cada um, é representado pela proprietária de uma barraquinha de comestíveis, que, exercendo sua profissão na rua, situa-se estrategicamente para tomar conta da vida de todo mundo. É a fofoqueira de plantão, pronta a jogar as pessoas umas contra as outras quando surpreende algum desvio de conduta. Nesse sentido, o comportamento de Kena e Ziki será um prato cheio para essa fiscal da moralidade pública, a chamada Mama Atim (Muthoni Gathecha). Ela é a “voz do povo”.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.