PUBLICIDADE

Versão de ‘O Irlandês’ é contestada

Filme de Martin Scorsese põe em foco o misterioso sumiço de líder sindical, mas um advogado diz que o longa está errado

Por Manuel Roig-Franzia
Atualização:

MOORESTOWN, NEW JERSEY - Para chegar ao chefão, você tinha de passar pelos durões. Sujeitos com mãos calejadas e fisionomias rígidas, reunidos no bar no Rickshaw, um local de encontro de mafiosos com o símbolo de um pagode no teto, localizado ao longo da pista de corrida em Cherry Hill, New Jersey.

Robert De Niro, Al Pacino e Ray Romano em 'O Irlandês' Foto: Netflix

PUBLICIDADE

“O que você está fazendo aqui?”, eles perguntaram, mas sem dar boas-vindas, ao jovem advogado que entrou no local. “Estou aqui para me encontrar com Frank”, respondeu o advogado, 33 anos, cabisbaixo, chamado Glenn Zeitz.

“Foi como separar o Mar Vermelho”, lembrou Zeitz, hoje meio aposentado, ao falar daquele dia há 40 anos. O chefão apareceu do outro lado do bar, com uma taça de vinho na mão. Um sujeito de 1,90 m de altura, e mais de 110 quilos. Frank Sheeran, conhecido como o Grande Irlandês, líder do sindicato dos caminhoneiros, uma lenda.

Sheeran só quis saber algumas coisas antes de contratar seu novo advogado. Zeitz era um mulherengo ou gostava mais de beber? Zeitz respondeu pedindo um Crown Royal. Outra coisa que Sheeran quis saber era se ele prometeria incutir duas ideias na cabeça das autoridades federais e do público: Sheeran nunca seria um delator e, mais importante, não teve nada a ver com o desaparecimento do seu chefe, Jimmy Hoffa, o poderoso líder do Teamsters (o sindicato dos caminhoneiros).

Após acertarem esses pontos, Sheeran entregou a Zeitz um envelope com US$ 10 mil em dinheiro. O rápido encontro resultou numa relação pessoal e de negócios que durou décadas e que ainda atormenta Zeitz. No decorrer dos anos, uma das filhas de Sheeran, e numa certa ocasião ele próprio, sugeriu que Sheeran matou Hoffa, alegação que sepultaria um dos grandes mistérios da história criminal americana.

Durante todo esse tempo, a tendência de Sheeran era dar muitas versões do desaparecimento de Hoffa, mesmo depois de supostamente ter confessado o crime, pouco antes de sua morte, em 2003. Mas a noção de ser ele o assassino de Hoffa nunca deu uma plataforma maior e mais promoção do que nas últimas semanas com o lançamento do filme O Irlandês, da Netflix, estrelado por Robert De Niro no papel de Sheeran e Al Pacino como Jimmy Hoffa.

O filme, com 10 indicações para o Oscar, é baseado no livro I Heard You Paint Houses (Eu Soube que Você Pinta Paredes, em tradução livre), de 2004, de um antigo promotor, escritor e outrora advogado de Sheeran, Charles Brandt. Tanto o livro quanto o filme o retratam como o homem que matou Hoffa e o assassino de “Crazy Joe” Gallo, a vítima num dos mais famosos assassinatos não solucionados na história da máfia.

Publicidade

O filme, como muitos que procuram retratar pessoas e eventos reais, mais uma vez levanta perguntas sobre como o público absorverá a história e se uma versão contestada ou distorcida dos eventos exibida na tela pode se tornar uma tese aceita como verdadeira. Desde a publicação de I Heard You Paint Houses, Zeitz alimentou uma obsessão, ou seja, fazer uma defesa de Sheeran como advogado póstumo do velho amigo. Ele contratou um detetive particular e consultou um advogado especialista em ética legal para determinar o que poderia revelar sem violar o dever de sigilo que pauta a relação entre advogado e cliente, que persiste mesmo depois da morte.

Recentemente, Zeitz abriu seu enorme arquivo particular para o Washington Post – caixas empilhadas no porão e no seu escritório em sua propriedade em Moorestown, repletas de documentos, incluindo anotações feitas à mão nunca vistas e cartões de felicitações enviados por Sheeran, notícias sobre investigações confidenciais e memorandos tão antigos que os grampos oxidaram.

O argumento de Zeitz é simples e, de acordo com muitos especialistas em Jimmy Hoffa, como também antigos agentes do FBI envolvidos no caso: o filme e o livro estão errados.

“Charles Brandt e eu confiamos na veracidade do livro e há muitas evidências que apoiam nossa crença”, disse o seu editor, Chip Fleischer, da Steerforth Press. “Como procurador-geral do Estado de Delaware, advogado criminal, investigador, promotor público, especializado em homicídios e reconhecido especialista em interrogar testemunhas relutantes, Charlie trouxe seu conhecimento e sua experiência para respaldar as informações de modo a garantir que seu livro contivesse só a verdade.”

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Desaparecimento. O acontecimento fundamental no livro e no filme é o desaparecimento de Hoffa em julho de 1975. Uma geração de jornalistas investigativos fanáticos por histórias de crimes, policiais e escritores tentou solucionar o mistério. Por muito tempo, Sheeran foi considerado uma figura importante com conhecimento in loco da saga, mas poucas pessoas achavam que ele era o assassino de Hoffa. Ele se inseriu no caso, derrubando indícios tentadores. Mas sempre havia um problema: jamais conseguiu deixar clara sua história.

“Frank falava qualquer coisa”, disse Zeitz. E, de fato, à medida que passaram os anos e perdeu contato com Zeitz, Sheeran contou muitas histórias imaginárias sobre Hoffa. Disse que dois órfãos de guerra sicilianos mataram o líder do Teamsters, que mercenários vietnamitas o assassinaram. Falou que um ataque a Hoffa havia sido ordenado por membros do alto escalão do Partido Republicano, ou da Casa Branca, ou o procurador-geral de Nixon, John Mitchell.

Ele conseguia ser agressivo ao negar algum envolvimento. Certa vez, um advogado seu ameaçou processar Dan Moldea, um especialista em Hoffa, por ele ter sugerido que Sheeran estava ligado ao desaparecimento do líder sindical.

Publicidade

E ele tentou vender o projeto de um livro usando uma carta forjada de Hoffa. Ele e um coautor desenvolveram um manuscrito afirmando que Hoffa foi morto pelo gângster Salvatores “Sally Bugs” Briguglio – uma tese endossada por alguns especialistas.

À época do desaparecimento de Hoffa, o líder do sindicato dos caminhoneiros estava tentando retomar o controle do sindicato depois de passar um longo período na prisão, condenado por tentar influenciar o júri e por fraude. 

Em altaCultura
Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

O Teamsters era controlado por Frank Fitzsimmons, que tinha relações com figuras da máfia mais favoráveis a ele do que a Hoffa, que criticava publicamente o crime organizado. Hoffa foi visto pela última vez em um carro em uma área fora de Detroit. Sheeran, Bufalino e outras figuras do crime organizado estavam a caminho da mesma cidade para um casamento. O desaparecimento desencadeou uma ampla investigação que não chegou a lugar nenhum.

Zeitz, hoje com 72 anos, diz que Sheeran estava “nas proximidades”. E acrescentou, baseado no seu acesso a documentos do FBI e em outras pesquisas, que “claramente ele não atirou em Jimmy Hoffa”.

O FBI tinha suas dúvidas quanto a Sheeran, indicando-o como um dos muitos suspeitos num memorando confidencial que foi depois aberto ao público em que o nome de Sheeran é mencionado brevemente, concentrando mais atenção em outros possíveis assassinos e conspiradores. Eric Shawn, âncora da Fox News e apresentador do Fox Nation’s Ride: The Search for James R. Hoffa, pressionou o governo a divulgar documentos ocultos ou editados, como um do Departamento de Justiça que diz que Sally Bugs “tinha a real atribuição” de matar Hoffa.

“A verdade está nos arquivos do FBI. Temos de saber tudo o que o FBI está ocultando”, disse Shawn em uma entrevista. Em 1979, quatro anos depois do desaparecimento de Hoffa, Sheeran foi indiciado, acusado de ordenar a morte de dois líderes sindicais. Zeitz era advogado de um conhecido mafioso conhecido como Lou Buttons, que jamais foi condenado por atividades mafiosas e acabou sendo indiciado junto com Sheeran, mas em julgamentos separados. Os dois homens foram considerados não culpados por um tribunal federal da Filadélfia.

Alguns meses depois, Sheeran foi novamente acusado, desta vez por um caso de extorsão trabalhista, numa ação envolvendo vários réus, num tribunal federal em Delaware. Foi quando ele convocou Zeitz para se reunir com ele no bar no Rickshaw. James Schwartzman havia recomendado Zeitz em parte porque era o único advogado que Sheeran acharia que não era um bêbado. Zeitz foi para Nova York para assistir ao O Irlandês num festival de cinema, antes de ser lançado pela Netflix. Gostou do filme, salvo a representação de Sheeran como o assassino implacável e constante que matou Hoffa com dois tiros.

Publicidade

No seu escritório, cercado de caixas de documentos sobre seu velho amigo, Zeitz às vezes imagina o que ocorreria se ele ainda vivesse para assistir ao O Irlandês. “Se ele voltasse e assistíssemos ao filme juntos, daríamos boas gargalhadas”, acrescentou o advogado. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.