"Uma Onda no Ar" preenche lacuna ética nas telas

Filme de Helvécio Ratton, em cartaz nos cinemas, conta a vitória clara de uma causa popular: a implantação de uma rádio comunitária numa favela

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Por Agencia Estado
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Uma Onda no Ar, de Helvécio Ratton, talvez não tenha a contundência dos grandes trágicos. Pelo contrário, se existe tragédia no meio do percurso desse enredo baseado em fatos reais, seu desfecho se encaminha para algo que, no Brasil, passa por autêntica raridade - a vitória clara de uma causa popular. Os fatos narrados pelo longa são livremente inspirados na luta dos moradores de uma favela de Belo Horizonte para terem sua rádio comunitária. A rádio pirata - com potência de transmissão suficiente para ser ouvida pelos habitantes da zona metropolitana de BH - foi várias vezes fechada pela polícia, até conseguir legalização depois de premiada pela ONU. No filme, o criador e líder da emissora Jorge (Alexandre Moreno) é baseado no verdadeiro idealizador da Rádio Favela, Misael Avelino dos Santos. Jorge é filho de lavadeira, estuda em colégio de ricos graças a uma bolsa e sofre com o racismo e a discriminação de classe social. Tem, entre seus amigos de morro, um entendido em coisas de eletrônica, que dará suporte técnico para a rádio, e outro, com vocação para o desastre, que acabará por se envolver com o tráfico de drogas. Uma Onda no Ar se insere na longa tradição nacional que consiste em ambientar histórias exemplares na paisagem da favela. Nessa tradição cabem idealizações como Favela dos Meus Amores, ou Orfeu do Carnaval, ou visões problematizadoras da ordem social como Rio 40 Graus, Gimba ou Cinco Vezes Favela. A favela pode ser o inferno do crime, como em Cidade de Deus, ou um lugar onde a maior parte da população é formada por gente pobre, honesta, trabalhadora e esperançosa. Enfim, de lutadores que, dentro da ordem, abrem caminho em um sistema social que tende a marginalizá-los. A história de Jorge, tão diferente da de seu amigo que cai no crime e morre cedo, tem sabor de apólogo ou fábula moral. Nesse sentido, o trabalho de Ratton guarda um cunho humanista e iluminista. Humanista porque acredita no homem como medida e finalidade do corpo social. Não importa o quanto a persistência de Jorge fira a lei ou o interesse das emissoras tradicionais: sua iniciativa deve prosperar, criando a própria legitimidade interna, porque a causa é justa e dedicada ao bem comum. Iluminista, porque acredita francamente que uma pedagogia da informação fará do homem um ser melhor - mais participativo na distribuição do bolo econômico, e menos prisioneiro dos engodos ideológicos do poder e da classe dominante. Por isso, a Rádio Favela, como se anuncia, falará dos assuntos que realmente interessam aos favelados, cobrindo assim uma inevitável lacuna da programação das rádios oficiais. Essas duas vocações, a humanística e a pedagógica, dão o tom geral do filme. São o que ele tem de forte, mas também responsáveis por suas fraquezas. Uma Onda pode ser refresco quando a tendência dominante passa por certo niilismo que já nem mesmo se reconhece como tal. Mas também pode causar desconforto quando certas falas de personagens (do protagonista, em especial) soam como palavras de ordem. Para quem conhece um pouco a história da cultura do País, seria como se Jorge fosse um personagem do CPC, os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes que, nos anos 60, propunham uma arte de fácil assimilação, transformadora do ponto de vista social e exemplar em sua mensagem. A forma escolhida para narrar Uma Onda no Ar é tão simples quanto seu conteúdo. Ratton não perde tempo em estetizações, como se confiasse, talvez em demasia, na força intrínseca da história que tinha para contar. Trabalha em planos clássicos, com um flash-back muito simples para conduzir a narrativa - Jorge, mais uma vez preso por suas atividades, conta para os companheiros de cela a saga da Rádio Favela. As atuações obtidas dos atores não-profissionais são corretas, mas passam longe do brilhantismo. Essa recusa do espetáculo, consciente ou não, desejada ou não, tem lá seus méritos, mas também um preço a pagar. Seu estilo sóbrio pode, com alguma razão, ser tachado de pobre. O descaso com as leis modernas do entretenimento tende a dificultar a comunicação com o público, sem surtir o efeito de distanciamento que o levaria à reflexão. Em todo caso, o filme tem sido aplaudido no fim de algumas sessões, o que pode indicar que demanda ética reprimida continua presente no público, ainda mais em ano eleitoral. Para usar a linguagem dominante: pode ser que, preenchendo alguns requisitos como honestidade de propósitos e clareza de princípios, Uma Onda no Ar consiga encontrar seu "nicho de mercado". De qualquer forma, será um nicho estreito porque não tem mesmo condições de competir, mano a mano, com o exercício de virtuosismo visual e dubiedade ética de filmes muito mais afinados com o seu tempo. Uma Onda no Ar. Duração: 92 minutos. 14 anos.

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