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Uma das faces do "duplo" Sartre?

Por Agencia Estado
Atualização:

Não chega a ser uma revelação literária o roteiro intitulado Résistance, que Sartre escreveu em 1943, durante a ocupação nazista da França, para a companhia Pathé. Ninguém, contudo, subestima o fascínio exercido pelo texto, sobretudo porque este fortalece a hipótese dos "dois Sartre", defendida recentemente pelo filósofo Bernard-Henri Lévy em seu livro Le Siècle de Sartre. Em Résistance, o herói François Dornier é um jornalista diletante. Prisioneiro de guerra, ele reconquista a liberdade graças às relações de seu sogro, diretor de um jornal colaboracionista de Rouen, e sob o compromisso de que voltará a escrever "dentro da linha" da publicação. Depois, porém, Dornier recusa o compromisso, prefere sacrificar a vida engajando-se na Resistência ativa. Nesse jogo duplo de Dornier, os exegetas sartrianos discernem a própria dualidade do filósofo existencialista. Na época, liberado de um campo de prisioneiros na Alemanha, Sartre foi tentado por um instante pela ação clandestina para acabar optando por uma forma de "resistência pela escrita", mas que comportava compromissos com a ordem vigente na França. Assim, ele passou a escrever artigos para a revista colaboracionista Comoedia, aceitou a publicação de livros na editora Gallimard expurgada de seus autores e empregados judeus e autorizou a representação pública de suas peças teatrais conforme o desejo dos ocupantes nazistas. Severamente espionada, a companhia Pathé não pôde filmar o roteiro de Résistance. Do episódio, ficou patente apenas uma coisa - a coragem de Sartre. Ele não mandou propriamente pelos ares a sede da Gestapo como seu herói Dornier, mas enviou à produtora Pathé um texto tão explosivo quanto uma bomba. Como sublinham os especialistas, Résistance documenta com nitidez o choque entre o Sartre pessimista, desabusado e suspeito do período que precedeu a guerra, e o Sartre militante apaixonado das causas populares no pós-guerra. Mutatis mutandis, no roteiro, François Dornier foi considerado como traidor por seus companheiros da Resistência até o momento em que seu sacrifício voluntário comprovou o contrário. Situação praticamente idêntica à que Sartre descreveu antes em A Náusea (1938), no qual o autor parecer consentir com seu próprio sacrifício em nome da necessidade coletiva.

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