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Uma caixa de acertos de Clint

Coleção com sete filmes, realizados de 1982 a 2012, evidencia trajetória coerente, de invejável qualidade

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Um deles em particular, Invictus (2009), acabou ganhando súbita notoriedade pela morte recente de Nelson Mandela. No filme, Mandela é interpretado por Morgan Freeman que, além de ficar muito parecido com o líder da luta antiapartheid, também lhe copiou gestos, voz e o modo de andar. Muito convincente. A história é a da libertação de Mandela após 27 anos de cárcere e sua ascensão à presidência. Estadista, Mandela percebe que é preciso enterrar ressentimentos e unir a nação. Por isso consegue fazer de um esporte branco, o rúgbi, símbolo de união nacional. Matt Damon vive o capitão do time. Conquistado por Mandela, ele consegue feito considerado impossível, o título mundial. Mas, claro, a proeza maior é a do próprio Mandela. Clint dirige essa história baseada em fatos reais com aquela dignidade sóbria que faz a sua grandeza. Mandela, o homem que poderia se vingar, mas não o faz em nome de algo maior, é bem um personagem digno de Clint Eastwood. Além de Invictus, a caixa contém Firefox - A Raposa de Fogo (1982), Um Mundo Perfeito (1993), Dívida de Sangue (2002), Gran Torino (2008), J. Edgar (2011) e Curvas da Vida (2012). Todos eles, sem nenhum favor, situados entre o bom e o ótimo. E, mais importante, trazendo o velho e bom Clint com as questões que o obcecam. Obsessões, como dizia Nelson Rodrigues, são o que conferem estabilidade a uma personalidade. Clint, por exemplo, não pode se livrar do tema do personagem que é o único capaz de cumprir determinada missão. É o caso do piloto afastado de Firefox, estimulado a voltar à ativa pois apenas ele pode pilotar determinado avião, que é preciso furtar à União Soviética. O aparelho voa a seis ou sete vezes a velocidade do som, é invisível aos radares e pode ser controlado apenas pela mente do piloto. Estamos no tempo da guerra fria e combater os russos é a prova máxima de patriotismo. Além do mais, no tempo em que a tecnologia começa a automatizar a vida humana, a perícia do piloto ainda se mostra um bem indispensável. Uma afirmação do indivíduo, tão cara à moral americana. Nesse ponto, Firefox se parece muito a Os Eleitos, que Philip Kauffman adaptou do livro de Tom Wolfe sobre jatos supersônicos e corrida espacial. São odes aos velhos pilotos contra o poder anônimo da máquina. Outra obsessão de Clint, a honra, o preço a pagar. Em Dívida de Sangue (2002), ele é o agente Terry McCaleb, que na perseguição a um bandido sofre um devastador ataque cardíaco. Salvo por um transplante, o agora aposentado McCaleb é procurado pela irmã da doadora. Ela deseja que o tira volte à ativa e encontre o assassino da antiga dona do seu coração. De que outra forma poderia pagar-lhe o favor de ter-lhe dado uma nova vida? Clint, o homo eastwoodanius, não pode negar-se esse compromisso. Assim como não pode furtar-se ao devir da história, que lhe exige mudanças quando muda a conjuntura, embora o centro moral permaneça intacto. Em Gran Torino, ele próprio é Walt Kowalski, trabalhador aposentado da indústria automobilística de Detroit. Americano típico, daqueles de bandeira hasteada na varanda, Kowalski vê seu bairro "invadido" por imigrantes de vários países. A própria cidade entrou em crise, o que transformou o seu bairro em periferia, com locais à mercê de gangues juvenis. O que fará esse americano old school, que tem na garagem um modelo Gran Torino em perfeito estado, símbolo de grande orgulho do operário em busca da perfeição que ele foi no passado? Vai trancafiar-se em suas certezas ou abrir-se para a nova realidade? O espectador verá que, se essa abertura existe, no caso de Clint ela não se dá de forma piegas, nem mesmo linear. O processo de mudança em Kowalski é trabalhoso, ambíguo, dependente da mobilização de poderosas forças internas. E, mesmo no desfecho, quando pensamos que entraria em cena o velho Clint, de arma em punho, somos uma vez mais surpreendidos. Esse final fala de uma moral dura, feita de sacrifício, em nada diferente da ética despojada do Oeste, na qual o indivíduo é soberano mas, na situação-limite, a comunidade sobrepõe-se a ele. Em todo caso, é o indivíduo que não recua diante da dureza da vida, o que se traduz num cinema vacinado contra a pieguice, embora o roteiro possa levá-lo para perto dela. É o caso de Curvas da Vida, em que Clint interpreta Gus Lobel, célebre olheiro de beisebol cuja visão começa a falhar em função da idade. Ele passa a ser ajudado por sua filha (Amy Adams), uma advogada ambiciosa e com outros valores. Lobel pode estar tendo problemas de visão, mas Clint mira em seu terreno conhecido e preferencial, o do choque de valores, do turrão que finge não ceder, mas cede. Que tem dificuldades em deixar passar à frente a nova geração, mas, bom trágico que é, sabendo-se parte do passado, entende que é dos jovens a prioridade. Da mesma forma, Clint traz expressa no rosto já vincado toda a desolação da experiência neste extraordinário Um Mundo Perfeito (1993), em que faz o Texas Ranger Red Garnett, no encalço do foragido Butch Haynes (Kevin Costner). Butch sequestrou um menino para facilitar a fuga e os dois estabelecem uma estranha relação, dadas as circunstâncias. Enfim, nada é como deveria ser nos manuais e um presidiário pode, por que não?, ter mais caráter do que um representante da lei. No entanto, os mecanismos da sociedade são implacáveis e tudo o que o personagem de Clint pode fazer é mostrar seu desalento num close em que até a última ruga contém sua função expressiva. Completa a caixa J. Edgar, com Leonardo DiCaprio interpretando o poderoso chefe do FBI, J. Edgar Hoover, numa das épocas mais nefastas da história recente, a da perseguição aos comunistas ou simplesmente suspeitos de atividades antiamericanas. Em sua visão desse período, e desse personagem, Clint é ácido e incisivo, em nada se assemelhando ao conservador que um dia quiserem fazer dele. Ou que ele foi, mas mudou com o amadurecimento. A idade faz bem para algumas pessoas. Não para todas.

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