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'Um Toque de Pecado’, de Jia Zhang-ke disseca as contradições da China

Filme é talvez o mais complexo e completo da Mostra de Cinema de São Paulo

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

É sempre problemático fazer afirmações definitivas numa Mostra de dimensões sobre-humanas: ninguém pode se gabar de ter visto tudo. Mas, feita a ressalva, é possível que Um Toque de Pecado, de Jia Zhang-ke, seja mesmo provavelmente o mais complexo e completo filme desta Mostra. Ao lado, talvez, do romeno Child’s Pose (Amor Materno) e do taiwanês Cães Errantes.

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Um Toque de Pecado traz histórias passadas em pequenas cidades da China. São, segundo o diretor, tiradas, ou inspiradas, na crônica policial. Histórias de sangue, portanto. Na primeira delas, a mais impressionante, um trabalhador revolta-se contra os desmandos dos dirigentes locais e transforma-se em serial killer. Noutra, um triângulo amoroso termina de maneira sangrenta. E assim por diante. Esse material, em outras mãos, poderia ser tratado de maneira banal. Jia Zhang-ke faz com que ele transcenda o episódico.

Em primeiro lugar, pela maneira elegante e ao mesmo tempo intensa com que filma. Tem um toque especial, característico e reconhecível. Uma assinatura. Além disso, é perfeitamente integrado, de maneira crítica, à realidade do seu país, desse grande mistério e contradição chamado China. Uma nação tornada potência econômica mundial, praticante de um capitalismo selvagem e predatório, aliado ao autoritarismo comunista. Duplicidade que gera não poucas contradições internas – todas minuciosamente detalhadas por Zhang-ke.

Desse pragmatismo decorre uma devoção ao dinheiro que não condiz muito com a imagem de país comunista. E, bem visto, Um Toque de Pecado revela-se, nada mais nada menos, que um filme sobre o dinheiro. O poder corrosivo do dinheiro, como dizia Marx, pensador que inspirou a fase comunista chinesa nos tempos de Mao Tsé-tung. Hoje a realidade é outra, obviamente, e o acúmulo assimétrico de dinheiro vai produzindo os desastres habituais. Desse modo, o candidato a serial killer é um pobre trabalhador que frequentou a mesma escola de um bilionário, dono de um jatinho particular. A prostituição prospera em diversos night clubs destinados a visitantes estrangeiros, com os bolsos cheios de dólares – e está na origem de um caso de suicídio documentado por Jia Zhang-ke.

Enfim, Um Toque de Pecado é não apenas um filme crítico sobre a atual realidade chinesa. Seu tema profundo e universal é a coisificação contemporânea das relações humanas sob a ética dos negócios, do lucro, da posse. Numa das cenas mais tocantes, uma atendente da boate, confundida com garota de programa, recebe uma proposta de um cliente da casa. Diante da recusa, o homem tira um maço de dinheiro do bolso e, com ele, esbofeteia a moça. Como ela ousa recusar oferta tão boa? Não está ele pagando?

A tragédia das relações humanas contemporâneas está toda neste filme, que só em aparência seria um retrato exclusivo da realidade chinesa.

, 14h

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