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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Truffaut parte 2

Diretor revelou por que haviam desprezado ‘Rastros de Ódio’: era verão e queriam as férias

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Atualização:

Falava meio rápido, fumava à beça, 2 cm mais baixo do que eu, muito tímido – ok, disso dei conta na coluna passada, mas repito para marcar bem a figura de François Truffaut, ao qual retorno, atendendo a insistentes pedidos. Como também já foi em parte relatado, Truffaut passou uns dias no Rio, vindo do Festival de Mar del Plata de 1962, ao lado de um punhado de estrelas do cinema francês (Jean-Paul Belmondo, Pascale Petit, Marie Laforêt, etc.) e outro cineasta parisiense, Phillippe de Broca, que fora seu assistente em Os Incompreendidos e pouco depois aqui filmaria O Homem do Rio, com Belmondo. O que afinal rolou além da persistente dor de cabeça que quase alijou Truffaut do coquetel da Unifrance Film, na noite de 4 de abril? A mais calma e extensa conversa que pude ter com ele, um proveitoso tête-à-tête. No giro pelas atrações turísticas da cidade, com David Neves ao volante, prevaleciam as banalidades de praxe sobre a paisagem e a arquitetura.  Dele só havíamos assistido ao curta Les Mistons e seus dois primeiros longas: Os Incompreendidos e Atirem no Pianista. No correr da semana, seríamos apresentados a Jules e Jim. Nunca me senti tão compelido a largar o jornalismo e fazer cinema. Quantas vezes ele teria ouvido confissão igual? 

François Truffaut em 1965, durante o festival da Nouvelle Vague Foto: Jack de Nijs/Anefo/Wikimedia Commons

De espadrille cáqui, quizás comprada no balneário argentino, não se surpreendeu com a Croisette carioca. Já conhecia Copacabana de foto e filmes. Mencionei Les Enchaînés (Interlúdio na França), de Hitchcock, falsamente ambientado naquele cenário.  Dali a um mês, Truffaut iria a Cannes, como presidente daquele júri que, manipulado por ele, daria a Palma de Ouro a O Pagador de Promessas, passando a perna em Buñuel e no Antonioni de O Eclipse. Não gostava do cinema de Antonioni: frio, árido, “Antonioennui”. 

'O Pagador de Promessas', de Anselmo Duarte Foto: Cinedistri

Para dali a quatro meses, agendara a primeira de uma série de entrevistas com Hitchcock, que redundaria na mais lida conversa entre dois diretores de cinema. Na época, seus Hitchcocks favoritos eram Psicose e Janela Indiscreta.  Via menos filmes (3 ou 4 por semana) do que em seus tempos de crítico (uma dúzia) e, entre os recém-vistos, gostara de Oito e Meio, América América (era fã de Kazan), Os Guarda-chuvas do Amor, O Desprezo e Muriel. Sua experiência mais inesquecível: na tarde de 6 de julho de 1946, deslumbrou-se pela primeira vez com Cidadão Kane. Tinha 14 anos.

Contou-me muitos babados dos Cahiers du Cinéma e sua fauna. E enfim me esclareceu por que haviam desprezado tanto Rastros de Ódio, de John Ford, em sua estreia em Paris. “Era verão. Apressados pelo início das férias, não demos ao filme a merecida atenção. Revimos nossa opinião. Godard adorava, e não conseguia conter as lágrimas sempre que via John Wayne pegar Natalie Wood no colo, e dizer: ‘Let’s go home, Debbie’.” 

Opinião por Sérgio Augusto
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