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Trauma de guerra em filme coreano

Parte do segmento radical da Mostra BR de Cinema, "Endereço Desconhecido", de Kim Ki-Duk, usa o sofrimento da carne para expressar como padecem na existência os seres que cria e leva para a tela

Por Agencia Estado
Atualização:

Endereço Desconhecido, do coreano Kim Ki-Duk, faz parte do segmento radical da Mostra BR de Cinema, que está sendo realizada em São Paulo. Seus personagens são sofridos, como aliás já acontecia com os do seu filme anterior, A Ilha. Neste, havia algumas cenas chocantes como a do homem que engole uma fieira de anzóis e a da mulher que faz a mesma coisa, mas de forma ainda mais aflitiva. Em Endereço Desconhecido, mais uma vez Kim Ki-Duk usa o sofrimento da carne para expressar como padecem na existência os seres que cria e leva para a tela. Esses personagens são filhos bastardos de uma encruzilhada histórica. Vivem em uma pequena cidade chamada Pyongtaek, durante muito tempo dominada por uma base militar norte-americana. Um dos personagens é filho de uma prostituta com um soldado afro-americano, que se mandou para os Estados Unidos. Mãe e filho vivem num ônibus caindo aos pedaços e passam o tempo se torturando mutuamente. A mulher tenta encontrar o pai do garoto, mas as cartas voltam - daí o título. O segundo rapaz é filho de um incapacitado de guerra que perdeu uma perna em combate. A outra personagem é uma garota que ficou cega de uma vista brincando com o irmão. Ela acaba se envolvendo com um soldado americano, um tipo drogado e violento, um psicopata em potencial. Enfim, o que Kim Ki-Duk descreve é um inferno na Terra, nada mais nada menos. E todos os seus personagens, ou pelo menos os principais, apresentam algum tipo de mutilação física. Como se trouxessem no corpo a marca de uma falha, de uma ferida que também existe fora deles. No caso, a intenção é bem clara. Todos são filhos da guerra, a da Coréia, que aconteceu de 1950 a 1953, e portanto aparentemente acabou há quase 50 anos. Só na aparência, porque, como procura mostrar Ki-Duk, guerras não acabam de uma hora para outra. Ficam as feridas, as cicatrizes, os traumas. É na herança histórica do conflito que esses personagens se movem. Não são escolhidos ao acaso, como se vê. O adolescente, filho de pai americano, é a própria imagem desse ser dilacerado, dividido entre dois mundos. Um pé lá outro cá, pois sua mãe não consegue se desvencilhar da lembrança de um homem que, certamente, nem liga para ela. Escreve compulsivamente cartas que não chegam - e essa história, real, é que serviu de inspiração para o cineasta. Tudo o mais decorreu dela. O filho do homem que perdeu a perna é outro náufrago da vida. O ferimento do pai, que o transforma num herói de guerra, mas esquecido como todos os heróis, parece transferir-se para o filho. Como um herança maldita. E há a adolescente que perdeu a vista "brincando" com o irmão. Bem-entendido, brincando de um jogo de guerra, que consiste em colocar em cima da cabeça um alvo que o garoto procura atingir com uma arma improvisada, porém bem eficiente. Kim Ki-Duk faz um cinema da dor, radical como poucos hoje em dia. Já está na hora de se tentar uma avaliação crítica a sério desse tipo de cineasta (os austríacos Michael Haneke e Ulrich Seidl são dois outros exemplos) que não demonstram o menor compromisso com o prazer do espectador. Serviço - Endereço Desconhecido ("Soochwieen Boolmyung"). Drama. Direção de Kim Ki-Duk. Coréia/2001. Duração: 117 minutos. Amanhã, às 19h25, no Cineclube Directv; segunda, às 17h30, no Unibanco Arteplex 2, todos em São Paulo.

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