Trajetória de 'Último Tango em Paris' expõe as incongruências da censura

Filme será exibido no Telecine Cult, nesta terça-feira, 6, às 19h25

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Nada como o tempo para expor as incongruências da Censura. Durante o regime cívico-militar, Último Tango em Paris foi considerado atentatório à moral e aos bons costumes, um perigo para as famílias brasileiras e, como tal, proibido em todo o território nacional. Naquele tempo, o zelo moral somava-se à repressão política – nem sexo nem denúncias de ordem sócio-econômica-ideológica eram bem-vindos nas telas. Os militares e seus asseclas queriam o povo brasileiro a salvo, leia-se alienado. Pra frente, Brasil!

Nesse quadro, o longa de Bernardo Bertolucci com Marlon Brando e Maria Schneider foi proibido, integrando a mesma lista para a qual entraram A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Sacco e Vanzetti, de Giuliano Montaldo, Z e Estado de Sítio, de Costa-Gavras, Decameron, de Pier Paolo Pasolini, Sopro no Coração, de Louis Malle etc. Passaram-se mais de 40 anos - Último Tango é de 1972 – e em outro quadro da vida nacional o filme passa na TV paga, Telecine Cult, às 19h25, no mesmo horário em que, sempre atrasada, ainda estará no ar a novela das 6 da Globo, a mais leve da casa. Ao longo desses 44 anos, muita coisa mudou - os costumes e comportamentos, principalmente. A cena da manteiga não provoca mais o mesmo escândalo, ou desconforto.

Cena de 'Último Tango em Paris' Foto: Reprodução

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Naquele ano, Bertolucci já tinha um currículo que incluía Antes da Revolução, A Estratégia da Aranha e O Conformista, todos grandes filmes que expunham dilemas artísticos, existenciais e políticos. E veio, no pós-Maio de 68, Último Tango. Marlon Brando como um norte-americano em Paris. Sua mulher se suicidou e ele está consumido por sentimentos como raiva, culpa. Encontra a garota, num apartamento deserto. Fazem sexo selvagem. Continuam se encontrando. Não se dizem os nomes, não conversam sobre a vida fora daquelas quatro paredes. Ele, você entende. Brando tem um monólogo – que Bertolucci permitiu que escrevesse – em que expõe a frustração (e angústia) do personagem. Ela tem um namorado irritante, o cineasta Jean-Pierre Léaud (dos filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut), sempre com aquela câmera. O namorado só pensa no futuro. O amante é o presente. Acha que, quando as coisas acabam, a gente segue em frente. O amante a estimula a permanecer criança. “Crescer é muito chato”, chega a dizer.

A garota sente-se segura com ele. Todo mundo tem medo de expor os sentimentos. Ela chega a aceitar que o homem a brutalize, numa cena de sexo anal – usando manteiga como lubrificante. É sexo, ou pornografia? Os críticos até hoje reconhecem o filme como uma grande obra de arte. Os militares achavam que era lixo. A provocação sexual de Último Tango foi assimilada, mais difícil talvez seja viajar no significado profundo daqueles diálogos que expressam os impasses existenciais de diferentes gerações. Hoje, essa mesma indagação – sexo ou pornografia? - se pode fazer na cena da bacanal de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. Os costumes evoluem, mas o cinema não perde a capacidade de provocar. Aquarius é arte, sim. Bertolucci foi acusado de sexista – Maria passa o filme nua, Brando está sempre vestido, até nas cenas de sexo. No posterior Novecento, ele mostrou Robert De Niro e Gerard Depardieu nus na mesma mesma, sexo frontal.

Brando morreu em 2004, aos 80 anos, imortalizado como um dos grandes ícones do cinema. Mas, em 1972, estava em baixa – salvaram-no o filme de Bertolucci e O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, que lhe valeu o segundo Oscar (já tinha outro, dos anos 1950, por Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan). Brando teve de fazer teste para passar no papel de Vito Corleone. Fez história ao recusar o prêmio da Academia. Maria morreu em 2011, aos 59 anos. Era realmente uma garota quando fez Último Tango – 20 anos. Até o fim queixou-se que Bertolucci e Brando abusaram dela e que a cena emblemática da manteiga foi tramada pelo diretor com o astro no set. Não estava no roteiro. Ela se sentiu estuprada. E Bertolucci? Aos 76 anos, vive confinado numa cadeira de rodas, em consequência de uma cirurgia malsucedida de coluna. Em Cannes, ao receber sua Palma de Ouro especial, Bertolucci disse que foi punido. Gostava tanto de movimentos de câmera. A vida prendeu-o à cadeira – mas é uma cadeira móvel, capaz de rodopiar sobre si mesma. Como numa panorâmica de cinema.

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