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Tragédia argentina "Plata Quemada" estréia em SP

Por Agencia Estado
Atualização:

Marcelo Piñeyro, diretor de Plata Quemada, segue o mesmo raciocínio do autor do livro em que se baseou para realizar o filme que estréia nesta sexta-feira. Entrevistado há três anos, quando Dinheiro Queimado estava sendo editado no Brasil, o escritor Ricardo Piglia foi definitivo: "Longe de mim associar-me à moral particular das personagens do relato; isso não me impede de admirar o sentido ético de companheirismo presente em seus atos." A ressalva do escritor é importante porque o filme, como seu livro, conta a história de um par de homossexuais que realiza um assalto e inicia um caminho sem volta. Não é um filme de militância gay, mas aquilo que o diretor Piñeyro e o próprio Piglia definem como "uma tragédia argentina". A história, barra-pesada, é real. Em 1965, uma quadrilha assaltou um banco em San Fernando, na província de Buenos Aires. Perseguidos, fugiram para o Uruguai e se esconderam num apartamento em Montevidéu. Foi aí que ocorreu o cerco da polícia culminando num banho de sangue. Com alguma liberdade, pode-se dizer que Piñeyro fez a versão gay de um clássico de gângsteres dos anos 60 - o belo, e também trágico, Uma Rajada de Balas, que foi como se chamou, no País, Bonnie & Clyde, de Arthur Penn. Plata Quemada - a distribuidora Filmes do Estação preferiu não aportuguesar o título - passou no Festival do Rio BR 2000. Na época, há pouco mais de um ano, o filme havia arrebentado nas bilheterias da Argentina e da Espanha. Podia-se pensar que o diretor Piñeyro fez o filme para escandalizar - e faturar. Não é verdade. Entrevistado o diretor disse que fez Plata Quemada por causa dos personagens. Definiu-os como "os mais densos e apaixonantes da literatura argentina recente". Com os atores certos nos papéis, ele conseguiu passar essa densidade (e essa paixão) para a tela. Justamente, os atores. Piñeyro nunca teve dúvida de que Leonardo Sbaraglia seria perfeito como Nene. É um dos protagonistas: o outro é Angel. Sbaraglia é o ator que, há anos, acompanha o diretor em seus filmes. "Estamos amadurecendo juntos", Piñeyro diz. Faltava Angel e o cineasta não conseguia encontrá-lo no cinema argentino. Encontrou-o na Espanha: o ator Eduardo Noriega, de A Espinha do Diabo e dos filmes de Alejandro Amenábar. Definidos os atores, Piñeyro ainda hesitava. Testou-os várias vezes, inclusive em cenas rodadas, com película e tudo. Ambos podem ser ótimos atores - e isso o diretor já sabia -, mas se não houvesse química entre eles não haveria o filme. Pietà - Nene e Angel beijam-se com furor. Numa cena reconstituem uma Pietà gay. Pode parecer excessivo e talvez tenha mesmo um componente de choque para platéias não enquadradas no conceito de GLS. Mas o diretor se explica: "Queria usar uma iconografia forte, conhecida, mas queria subvertê-la, atribuir-lhe outro sentido, diferente daquele a que as pessoas estão acostumadas." Em seus filmes anteriores, obras como Tango Feroz, Cavalos Selvagens e Cinzas no Paraíso, Piñeyro estabeleceu sua preferência por personagens malditos, marginais. Nene e Angel possuem esse perfil, que o homoerotismo radicaliza. São amantes terminais. E, ao contrário dos heróis e heroínas trágicos dos filmes anteriores do diretor, sua marginalidade não é determinada por fatores ideológicos. Não possuem ideologia, não agem movidos pelo desejo de mudar o mundo de acabar com as estruturas existentes de poder. Agem assim porque se desejam e essa é a sua forma de viver e amar com intensidade. No primeiro filme de Jean-Luc Godard, Acossado, que inicia neste fim de semana o ciclo que o Museu de Arte Moderna, o MAM, dedica ao grande revolucionário do cinema nos anos 60, Michel Poiccard e Patriciá, os personagens de Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, são o equivalente heterossexual de Nene e Angel. Uma frase de Acossado serve perfeitamente para definir os personagens de Plata Quemada. A máxima deles poderia ser a de Poiccard: "Viver perigosamente até o fim." A cena da Pietà gay causa impacto, acentua no espectador um sentimento de comiseração pela dupla, mas a cena-chave do filme é outra. Acuados pela polícia, Nene e Angel queimam o dinheiro que roubaram. Sai daí o título do livro de Piglia (e do filme de Piñeyro). Não se põe fogo em dinheiro, é coisa de loucos. Nene e Angel não são loucos, a menos que sejam loucos de paixão. Queimar o dinheiro representa para eles o limite da transgressão. Ao fazê-lo, eles transpõem uma linha que nem existe, totalmente imaginária. Passam para o lado de lá e esse limite representa aquele ponto do qual não existe volta. Felizes Juntos, de Wong Kar-wai, um dos filmes-faróis do fim dos anos 90, também tinha esse radicalismo. Nada mais estranho a um mundo que tenta, cada vez mais, ser globalizado, leia-se: formatado para um tipo de consumo pasteurizado. Escandaloso não, de impacto, sim. Há poderosas diferenças estruturais entre o livro, que você pode ler, e o filme, que deve ver. Piñeyro eliminou a multiplicidade de vozes narrativas, que está na essência do projeto literário de Piglia (em Dinheiro Queimado, pelo menos). Manteve-se fiel aos preceitos aristotélicos da tragédia, naquilo que essa forma dramática tem de mais grandioso e funesto. O mais curioso é que a tragédia argentina de Plata Quemada, embasada na realidade parece sob medida para ilustrar o que diziam os surrealistas, que sempre quiseram, ardentemente, fugir ao real: "A beleza será convulsiva ou não será." A beleza de Plata Quemada é. Plata Quemada (Plata Quemada). Drama. Direção de Marcelo Piñeyro. Arg/2000. Duração: 125 minutos. 18 anos.

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