‘Summer of Soul’ resgata festival de música negra apagado pela história

Documentário de Questlove apresenta shows que reuniram mais de 300 mil pessoas em Nova York no mesmo ano de Woodstock e ficaram desaparecidos por 50 anos

PUBLICIDADE

Por MARIANE MORISAWA
4 min de leitura

Em 1969, foram realizados dois festivais de música no Estado de Nova York. Do primeiro, Woodstock, provavelmente você já ouviu falar. Do segundo, o Harlem Cultural Festival, que reuniu 300 mil pessoas e artistas como Stevie Wonder, Nina Simone, B.B. King e Sly and the Family Stone, provavelmente, não. Mas não precisa se sentir mal. Nem Questlove, músico e especialista em música, sabia de sua existência. Nem outros especialistas como ele. Nem o Google.

Sly and the Family Stone em 1969, no Harlem Foto: Captura de tela

“Então não acreditei de verdade quando esses dois caras me disseram que tinha acontecido”, disse Questlove, diretor do documentário Summer of Soul (...Ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada), em entrevista ao Estadão. Os dois caras, no caso, são Robert Fyvolent e David Dinerstein, os produtores do filme. O longa, que é favorito ao Oscar na categoria e venceu o prêmio do público e do Grande Prêmio do Júri em Sundance em 2020, está disponível no Telecine e entra em cartaz nos cinemas de São Paulo na quinta-feira, 27. 

Era tão inacreditável que aquele material, registrado por Hal Tulchin, tivesse ficado esquecido em um porão qualquer por 50 anos que Questlove tinha certeza de que havia algum problema. “Continuei cínico. Achei que a qualidade ia estar uma droga. E, quanto mais assistia, mais ficava embasbacado com as performances. Falei: ‘Peraí, não tem nada de errado com esse material!’”, disse.  Mas, sendo um homem negro nos Estados Unidos, ele logo percebeu que tudo estava de acordo com o padrão. “É extremamente americano. Muitos dos nossos avanços, invenções, da nossa arte e cultura não são celebrados como deveriam para que saibam que nós existíamos e existimos.”

Outro exemplo clássico: mesmo havendo hoje um suposto maior interesse por narrativas sobre as experiências afro-americanas e mesmo sendo Questlove, líder da banda The Roots, uma pessoa respeitadíssima no mundo cultural, ele precisou juntar diversos produtores para conseguir o financiamento. 

O músico não reclama, porém. No fim, acha que o filme saiu na hora certa. “Talvez, em outro momento, seria um filme cult, algo que algumas pessoas viram. Mas, quando foi lançado, a realidade espelhava o que acontecia na tela. Estávamos vivendo um caos, com agitação política, protestos, assassinato de pessoas desarmadas. Literalmente tudo o que acontece no meu filme, que acabou encontrando seu público porque fala de artistas se unindo para cuidar de uma comunidade em chamas.” 

O FESTIVAL. Em 1969, o festival foi concebido por Tony Lawrence e apoiado pelo prefeito John Lindsay (republicano, aliás) para tentar evitar distúrbios. Em abril do ano anterior, o líder antirracismo Martin Luther King Jr. havia sido assassinado. O crime vinha na esteira dos assassinatos de outros defensores dos direitos civis: o presidente John F. Kennedy em 1963, o ativista Malcolm X em 1965 e o senador Bobby Kennedy, dois meses depois de Martin Luther King Jr. 

Continua após a publicidade

Juntar alguns dos maiores artistas negros de então, como um jovem Stevie Wonder, Nina Simone, Sly & The Family Stone, Gladys Knight and the Pips, Mahalia Jackson e The 5th Dimension, parecia uma boa forma de conter os ânimos. E foi. 

Durante meses, Questlove, nascido Ahmir Khalib Thompson, transformou sua casa e seu local de trabalho mais constante – o programa de Jimmy Fallon – em uma espécie de instalação, com diversos televisores exibindo as 40 horas de gravações. Assim, ele foi absorvendo o que tinha para escolher o que entraria. Além disso, o diretor também entrevistou testemunhas do festival, que dão depoimentos emocionantes, e pessoas que contextualizam o momento. 

Summer of Soul é um documento histórico não apenas por trazer à tona um festival que musicalmente merecia ter tido pelo menos a mesma atenção que Woodstock. Mas também por mostrar um lado da experiência negra que nem sempre é visto na tela. Milhares de pessoas reunidas, festejando, metidas em roupas estilosas. “Todos sabem do derramamento de sangue, das lágrimas, da dor, da dureza da vida negra americana, mas não da alegria”, disse Questlove. “Muitas vezes pensamos no apagamento como uma igreja incendiada ou um líder assassinado ou na falta de aulas sobre a escravidão nas escolas. Mas não falar de um festival como esse também é uma forma de apagamento.”

“EU SOU UM DIRETOR” . Graças a esse material, Questlove, que é músico, DJ, compositor, escritor, descobriu-se também diretor, para sua própria surpresa. “Minha namorada me disse que, antes de 2020, eu estava constantemente me perguntando se tinha capacidade de fazer e se merecia”, disse ele. “E que, quando terminei o filme, tinha ido de ‘Sou um diretor?’ para ‘Eu sou um diretor’.”

Seu próximo projeto é um documentário sobre Sly & The Family Stone, que após o Harlem foi a Woodstock, a partir de quando as coisas tomaram um rumo trágico para o grupo. Antes ou depois de realizar seu projeto, porém, ele gostaria de voltar ao Brasil, onde já esteve, sempre de forma breve, e de onde sempre saiu carregado de discos. “Dizzy Gillespie ia ao Brasil o tempo todo para fazer colaborações. Também quero ter essa chance.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.