Subsídio ao cinema francês é posto em xeque

Jean-Marie Messier, proprietário do conglomerado Vivendi-Universal, quer acabar com o regime de "exceção cultural" que protege a produção francesa

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O cinema francês está em transe. Ao mesmo tempo em que comemora o excelente resultado de ocupação das telas com filmes nacionais, nada menos que 41% do mercado, procura absorver uma frase fatal de Jean-Marie Messier, dono do grupo Vivendi-Universal. Messier disse em alto e bom som (não se sabe se em inglês ou francês) que a exceção cultural estava morta. O executivo mora em Nova York, tornou-se um dos produtores mais poderosos do planeta e acaba de comprar, nos Estados Unidos, o canal TV USA. Na França, é dono do Canal +, a maior rede paga da TV francesa. A declaração caiu como bomba porque é justamente o sistema de "exceção cultural" que permite o subsídio ao cinema sem que a prática seja considerada protecionista pela União Européia. O que está em questão, portanto, é todo um sistema de produção e financiamento de filmes que coloca a França em posição privilegiada diante da hegemonia planetária de Hollywood. Países de cinematografias poderosas no passado, como Itália, Alemanha e Grã-Bretanha, têm suas telas ocupadas por uma média de 80% de produção norte-americana. O Brasil trabalha com cifras parecidas. As reações à declaração de Messier não se fizeram esperar. Foi tachado de traidor da pátria ou coisa pior. Cenas de nacionalismo explícito, no entanto, não vão ao cerne da questão. O artigo mais lúcido, e também contundente, foi publicado no semanário Le Nouvel Observateur. Assinado por Laurent Joffrin, o texto é agressivo, esclarecedor e didático. Lembra que o fundamento do sistema francês de financiamento está na taxa cobrada de cada ingresso vendido na bilheteria. Essa porcentagem é destinada a um fundo de sustentação à produção nacional. Como o cinema norte-americano ocupa, mesmo na França, a maior parte das telas disponíveis, transforma-se, ironicamente, no principal financiador do cinema francês. Concessões - Com a privatização das TVs, ocorrida alguns anos atrás, outro dado foi acrescentado à equação. Em troca da concessão, as redes se comprometem a destinar parte dos seus orçamentos à produção de filmes nacionais. O Canal +, de propriedade de Messier, dispõe de um quase monopólio sobre a difusão de filmes. Para consegui-lo, obrigou-se a destinar 20% dos seus recursos à produção. Esse percentual vale até 2004, mas Messier, na prática, quer começar a rediscuti-lo já. E o motivo mais imediato, segundo a análise da Nouvel Observateur, não está nas telas e, sim, no terreno esportivo. Com a entrada em campo de outra rede, a TPS, na disputa pelo rico filão do esporte, o Canal + teve de enfiar mais fundo a mão no bolso para conseguir os direitos de transmissão dos melhores eventos. Deseja agora compensar o "prejuízo" à custa do cinema. O Canal +, sozinho, é responsável por um terço dos recursos de que dispõe o cinema francês. Por isso, a rediscussão dessa cota tornou-se fundamental para a sobrevivência, ou não, do sistema. Esse é o fundamento econômico de um debate que, claro, se trava no plano ideológico. O discurso de Messier é um protótipo de liberalismo. Ele mesmo se diz favorável à diversidade, mas acha que, no fundo, o público é que deve escolher. Nenhum mecanismo de proteção, argumenta, é mais eficaz que uma indústria que produz bons filmes. E o exemplo estaria exposto à vista de todos: a comédia O Fabuloso Destino de Amélie Poulin, estrelada por Audrey Tautou, levou 8 milhões de franceses aos cinemas. Mas quem defende o sistema atual argumenta que um fenômeno como Amélie Poulin só se torna possível graças a uma estrutura bem montada, que garante primeiro a produção do filme, depois a correta distribuição pelos cinemas e, finalmente, a sua permanência nas salas. O pano de fundo dessa polêmica é a luta entre duas concepções antagônicas sobre o papel do Estado na produção da cultura - e talvez não apenas da cultura. Por isso, as posições francesas têm sido sistematicamente atacadas pelos Estados Unidos. No caso em questão, Messier fala não como francês, mas na condição de proprietário de um grupo que produziu blockbusters como O Retorno da Múmia e Jurassic Park 3. Entre as grandes companhias do ramo audiovisual, a Vivendi-Universal teve o segundo maior faturamento do ano nos EUA, perdendo apenas para a Warner. Briga de cachorro grande.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.