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Spike Lee: 'Eu não poderia ter feito o que fiz se me preocupasse com o que o público vai pensar'

Diretor fala sobre racismo, teorias da conspiração e a arte de contar histórias

Por KK Ottesen
Atualização:

Spike Lee, 64 anos, é cineasta premiado, ícone cultural, crítico social e torcedor obstinado do New York Knicks. Ao longo da carreira, já dirigiu, produziu, escreveu e atuou em filmes e documentários, mais recentemente o documentário da HBO NYC Epicenters: 9/ 11 - 2021 1/2. Sua vasta obra – cerca de quarenta filmes – ganhou inúmeros prêmios, entre eles um Oscar (melhor roteiro adaptado) por Infiltrado na Klan e um Emmy pelo documentário When the Levees Broke.

Por meio de suas narrativas ousadas e provocativas, nas últimas três décadas Lee tem sido uma voz importante a falar sobre raça, racismo e outras questões sociais. Agora em março, ele vai receber o prêmio do Sindicato dos Diretores pelo conjunto da obra. A empresa de Lee, a 40 Acres and a Mule Filmworks, está sediada em seu bairro natal, “a República Popular do Brooklyn”, e ele mora em Manhattan com sua família. A entrevista a seguir se baseia em duas conversas, que foram editadas e condensadas.

O diretor de cinemaSpike Lee na festa da Academy Museum of Motion Pictures, em Los Angeles em 2021 Foto: Mario Anzuoni/Reuters

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Você pode falar sobre o que moldou seu desejo de se tornar cineasta? Quando isso brotou pela primeira vez?

Eu cresci numa casa muito artística. Então dá para dizer que as sementes foram plantadas em casa mesmo. Minha finada mãe era cinéfila, sempre me levava ao cinema. Meu pai odiava os filmes de Hollywood. Então eu era a companhia de cinema da minha mãe – eu sou o filho mais velho. Mas meu pai adorava esportes, então ele estava sempre me levando para o Shea Stadium, o Madison Square Garden. Sou um exemplo perfeito de como os pais podem influenciar os filhos. De um jeito bom. De um jeito positivo. Acho que a maior razão pela qual os pais podem ter um efeito negativo nos filhos é quando eles matam os sonhos dos filhos. “Você não vai ganhar dinheiro – ainda mais sendo artista. Você não pode fazer isso, não pode fazer aquilo”.

E eu tinha um professor de cinema, o Dr. Herb Eichelberger, que me encorajou a fazer um documentário com as imagens que eu tinha filmado um certo verão, o verão de 1977. A cidade de Nova York estava uma desgraça, não havia empregos de verão. Então passei o verão inteiro filmando coisas com uma câmera Super 8: o apagão, primeiro verão de discoteca em Nova York. E era o verão do serial killer chamado Filho de Sam. Filmei tudo isso com a Super 8 que uma amiga me deu. Vietta Johnson. Foi quando tudo começou de verdade. Como sempre digo, foi quando o cinema me escolheu. Porque, se eu não tivesse ido ver Vietta naquele dia em particular, minha vida seria completamente diferente. Quero dizer, até aquele dia, a gente tinha passado todo o verão só sentado na varanda jogando Strat-O-Matic baseball. Mas o espírito – ou como você quiser chamar esse negócio – era aquele... “Acho que vou lá visitar a Vietta, ver o que ela está fazendo”.

Mas, depois de começar, era o que eu queria fazer. Eu queria construir um corpo de trabalho e não só fazer um filme e pronto.

Você ganhou um Oscar em 2019. Muitos diriam que já não era sem tempo. Mas não foi como diretor, categoria pela qual você é conhecido. O que você acha desse reconhecimento e o que significa para você ser reconhecido pela Academia?

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Bom, eu não estava nem aí. As pessoas sabem qual era o negócio. Quer dizer, fica bem óbvio com o corpo do trabalho. Eu não sou o único. Não sou o primeiro a não ganhar o que deveria. Fazer o quê? Quer dizer, eu ficava louco de raiva, sabe? Mas não tinha necessidade de ficar guardando esses sentimentos. Você deixa pra lá e segue em frente. Eu não parei de fazer filmes depois de Faça a Coisa Certa quando aquela p... do Conduzindo Miss Daisy ganhou. [Risos.] Sabe como é?  Eu segui em frente.

O clássico de 1966 traz Sidney Poitier no papel principal de Ao Mestre com Carinho Foto: Columbia Pictures/ Divulgação

Quem te inspirou? Quem foi seu mentor, seja no cinema ou na vida em geral?

Para mim, tenho que ir ao avô do cinema – do cinema negro – Oscar Micheaux. Sidney [Poitier], que nos deixou há pouco. Melvin Van Peebles acabou de nos deixar. Quer dizer, tem um monte de gente – e não necessariamente no cinema. Malcolm X. Meu irmão Dr. Martin Luther King. Então teve um monte de gente que me inspirou. E eu olho para eles todos os dias aqui no meu escritório. Eu tenho todas as fotos – pôsteres de filmes e outras coisas – do meu panteão.

E quando jovens cineastas pedem conselhos a você, o que você diz a eles?

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Tem que ralar. No trabalho. É a única coisa que eu falo. Ética de trabalho. Ética de trabalho. Ética de trabalho. Você tem que trabalhar.

Ao imaginar seus projetos, quanto você pensa no público? Quem é seu público, quem você quer que seja, o que eles toleram, o que eles não toleram?

A primeira coisa é: será que eu quero mesmo fazer este filme? Para mim. Qual é o próximo filme que quero fazer, o que vou dizer? E só depois o público. Não sou arrogante, tipo, “não me importo, não dou a mínima para o que o público diz” – não posso dizer isso. Mas fazer um filme é difícil pra cacete. É um ano da minha vida – às vezes mais. Então quero ter aquela paixão, aquela motivação e desejo de fazer as coisas. E, com sorte, isso vai se alinhar com o público.

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Eu não poderia ter feito o que fiz se me preocupasse com o que o público vai pensar. Agora, cada pessoa é diferente. Outros cineastas têm sua própria maneira de trabalhar. Então estou falando só por mim. Como artista, acho que você coloca seu trabalho na rua, e é isso. E as pessoas vão reagir do jeito delas.

O corte original de [seu documentário mais recente] ‘NYC Epicenters’ supostamente trazia teorias da conspiração desacreditadas do Onze de Setembro, e você recebeu muitas críticas por incluí-las. Então eu queria perguntar a você: por que você escolheu colocá-las no filme, para começo de conversa? E depois por que você decidiu cortá-las?

Obrigado por fazer essa pergunta. Em primeiro lugar, só porque alguém diz que é desacreditado, não significa que não seja verdade. A Comissão Warren disse que a p... do tiro mágico fez uma curva de 360 graus e matou JFK. E foi esse tiro que matou JFK! Um tiro que desafia a física. Os tiros não fazem isso. Então, só porque alguém diz “desacreditado” não significa que seja falso. Me ensinaram na escola que aquele terrorista filho da p... do Cristóvão Colombo descobriu a América!

Mas, então, o que você acha de tudo isso? Você acha que [essas teorias do Onze de Setembro] são verdadeiras? Ou acha que podem ser verdade?

Acho que tem coisas que precisam ser discutidas. Em todo o meu trabalho, apresento as informações, sejam documentários ou longas-metragens, e deixo o público decidir. Simples assim. As pessoas decidem por conta própria. As pessoas, antes de irem ver os meus filmes, elas têm uma vida. Elas foram impactadas pelos lugares onde cresceram, pela educação – todos esses fatores. Então não espero que todo mundo tenha a mesma reação ao filme. As pessoas até hoje me param na rua e perguntam: “Spike, quem fez a coisa certa em ‘Faça a coisa certa?’”. E eu digo: “O que você acha?”

Eu não seria o cineasta que sou hoje se não fizesse as coisas só porque alguém disse que não é verdade.

Então, por que você decidiu fazer os cortes, no fim das contas?

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Bom, para ser franco, eu não tive escolha.

Pela HBO, ou...

Não tive escolha. Mas isso também vai passar. Vamos deixar assim.

Spike Lee e Laurence Fishburne discursaram na terça-feira, 1,durante a celebreção do aniversário de 95 anos de Harry Belafonte' Foto: Dia Dipasupil/Getty Images/AFP

Alguém escreveu que você talvez tenha “capturado a psique coletiva do momento” ao incluir esse material, porque há um grande aumento nas chamadas teorias da conspiração, por causa da desconfiança generalizada.

Sim. Eu trouxe pessoas – cientistas, arquitetos – que não estão comprando a história de que, especialmente a terceira torre [no World Trade Center] desabou no chão – isso nunca tinha acontecido na história das estruturas de aço, nunca. Então não vejo mal em deixar as pessoas decidirem por si mesmas. E o que alguns meios de comunicação fizeram – e o que achei que realmente é incorreto e sujo e dissimulado – foi me comparar aqueles filhos da p... que tentaram derrubar o governo no Capitólio, só porque trouxe essas coisas para o documentário. Tentaram me botar no mesmo saco! Disseram que o que eu estava fazendo era o mesmo que os vândalos e o também o pessoal antivacina. Foi uma coisa totalmente errada. E foi feita de propósito. E, de alguma forma, eles foram bem sucedidos. Eles me botaram no mesmo saco que os vândalos de 6 de janeiro e os antivacina.

Você sente que pode contar as histórias que quer, fazer os filmes que quer?

Não. Quer dizer, tem algumas coisas que os estúdios não querem fazer. E os orçamentos são sempre uma grande preocupação quando você é cineasta. Então você tem que se encaixar onde dá. Porque a assinatura no cheque não é minha. Estou feliz por ter acabado de assinar este contrato com a Netflix. Contrato de três anos. Será minha casa cinematográfica pelos próximos três anos. Talvez mais. Vamos ver o que acontece.

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Você pode falar sobre uma experiência ou um momento específico de um de seus projetos que foi realmente satisfatório ou realmente alcançou o que você queria alcançar?

A cena final que fizemos de ‘Malcolm X’, que foi extenuante. Estávamos na África do Sul – a África do Sul do apartheid – com Nelson Mandela. E íamos finalizar aquele cronograma de produção rigoroso e tortuoso com Nelson Mandela – não tinha maneira melhor de terminar de filmar aquele filme. Na verdade, era o fim do filme também.

E aqui está a loucura: os Estados Unidos da América tinham botado o ANC, o Congresso Nacional Africano, na lista dos grupos terroristas. Não o governo. Não os africânderes, que mantinham os negros naquela condição. Mas o ANC, que estava tentando tirar os negros daquela condição. Então, filmar o grande Nelson Mandela em Soweto, África do Sul, durante aquele tempo, sabendo, como ele disse muitas vezes, que a autobiografia de Malcolm X – a autobiografia de Malcolm X contada a Alex Haley – tinha sido uma das coisas que o fizeram passar vinte e sete anos na p... da cadeia. E agora eles estava lá diante das cameras.

Eu passei o roteiro para ele, ele leu e depois disse, “Senhor Lee”. E eu falei, “Pode me chamar de Spike”. A última frase que ele tinha a dizer, do jeito que estava escrita, era: “Por todo e qualquer meio necessário”. Aí ele diz: “Spike, não posso dizer essa frase”. Eu sabia por que ele não podia dizer aquela frase. Porque eu sabia e todo mundo sabia que ele iria concorrer à presidência – que o apartheid iria acabar e ele iria concorrer à presidência do país. Se ele dissesse: “Por todo e qualquer meio necessário”, os africânderes iriam distorcer a narrativa – iriam usar a cena numa propaganda e coisas do tipo, para dizer que nós iríamos matar todos os brancos se o Mandela assumisse a presidência.

Eu já sabia que tínhamos imagens de arquivo do Malcolm X dizendo isso – e é assim que o filme termina. Você vai de Mandela a Malcolm dizendo: “Por todo e qualquer meio necessário”. É uma história verdadeira. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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