"Sopro no Coração" aborda tabu do incesto

Com sutileza, Louis Malle mexe em nitroglicerina pura ao tratar um tema-tabu e arma a dança de aproximação entre Clara (Lea Massari) e seu filho mais novo Laurent (Benoit Ferreux)

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O Sopro no Coração, ou de como tratar um tema-tabu com o máximo de elegância. O filme de Louis Malle, que reestréia com cópia nova, provocou escândalo em seu tempo. Motivo: ainda que com luvas de pelica, trabalha com o mais poderoso interdito da civilização, o incesto entre mãe e filho. Toda a história que ele arma não passa de uma sensual dança de aproximação entre Clara (Lea Massari) e seu filho mais novo, Laurent (Benoit Ferreux). Tudo o mais é irrelevante. Ou quase isso, porque tudo o mais é contexto, aquilo que justifica e intensifica o que se encontra em foco. La Massari interpreta à maravilha a mulher sensual, desenvolta, que se casou muito jovem com um médico francês - e ginecologista ainda por cima. Tudo nela respira erotismo, do sorriso ao sotaque (a personagem é, como a atriz, italiana), à maneira como anda e o jeito como mexe os cabelos. Tem amantes e a certa altura fará do próprio filho o seu confessor. Laurent se aproxima da mãe quando fica doente. Tem um "sopro no coração", que é como se denomina a disfunção clínica, seqüela de uma escarlatina -, mas claro, o mal de Laurent apresenta ressonâncias simbólicas bem mais complexas. Malle toma um tabu universal e lhe dá uma dinâmica bem particular. A história se passa em Dijon, em 1954, durante a campanha na Argélia, quando a França enfrentava divisões internas para manter suas colônias. Direita e esquerda se engalfinhavam em campos opostos. Uma época mais liberal em termos de costumes parecia despontar. Não por acaso, os temas do filme são de Charlie Parker, o grande sax do bebop, o improvisador, o artífice da liberdade no campo musical. Bird, como lhe chamavam, dizia que seu sonho era expandir o campo da música, abri-la ao limite máximo de suas possibilidades. Parker chegou à beira do abismo. O som que fez expressa esse andar na corda bamba. E, também por isso, se presta tão bem a um filme de feitio clássico, cujo conteúdo o encaminha para a proximidade da borda. Para o espectador de hoje, que possa talvez achar o filme meio tímido, cabe lembrar que Malle está trabalhando com o que de mais explosivo existe na relação humana. Em momento nenhum ele se afasta do que tem a dizer, nem disfarça a radicalidade do seu propósito atrás de uma elegância de fachada. Malle é elegante porque este é seu estilo e formação. Era seu jeito de ser. Era sua maneira de dirigir atores, filmar e movimentar a câmera - finésimo, ainda que tratasse do colaboracionismo com os alemães, como em Lacombe Lucien, ou da prostituição infantil, como em Garota Bonita. Sabia, por assim dizer, comer qualquer prato. E com todos os talheres. Outro equívoco em relação ao filme seria rotulá-lo de simplesmente edipiano, o que remete à tragédia grega, olhos arrancados e morte. Malle faz uma outra leitura da atração fatal. Provavelmente por se sentir no umbral de um mundo novo, de tolerância e hábitos abertos, procurou minimizar o caráter irredutível e letal do tabu. Mas a leveza do desfecho não deve iludir. Com sutileza, Malle mexe em nitroglicerina pura. O Sopro no Coração (Le Souffle au Coeur). Drama. Direção de Louis Malle. Fr/72. Duração: 110 minutos. 18 anos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.