Sexo, olhar e ser visto, o desejo entre iguais e diferentes: 2013 fez história no cinema

Arrancada final em novembro e dezembro fornecem mais da metade dos destaques do ano

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Existem convenções de que as listas de melhores tenham de ser organizadas com dez – dez filmes, livros, CDs, espetáculos etc. No cinema, em 2013, foram três filmes franceses, três norte-americanos, dois brasileiros, um português e um espanhol – Um Estranho no Lago, Azul É a Cor Mais Quente, Zarafa, Gravidade, Homem de Aço, Rush – No Limite da Emoção, O Som ao Redor, São Silvestre (que ainda vai estrear), O Estranho Caso de Angélica e Blancanieves.

 

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Foi um ano peculiar. Teve bons filmes desde o início – O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, estreou na primeira semana de 2013 –, mas houve uma arrancada final e novembro e dezembro fornecem mais da metade dos destaques. O público cresceu, o share do cinema brasileiro – a participação da produção nacional no mercado – também aumentou. Mas se o ano foi bom para o cinema brasileiro, não foi tão bom para os filmes. Um punhado deles estourou e forneceu as cifras otimistas, quase sempre as comédias. As que encabeçam a lista das bilheterias – De Pernas pro Ar 2, de Roberto Santucci, com Ingrid Guimarães, e Minha Mãe É Uma Peça, de André Pellenz, com Paulo Gustavo – não são descerebradas, pelo contrário, e isso já é alguma coisa.

O que é o cinema, perguntava-se, há bem uns 60 anos, o crítico francês André Bazin? Cada um terá suas respostas, e elas poderão ser diferentes, porque o cinema não vem com instruções de uso e cada um faz as escolhas daquilo que gosta. O cinema está na boca aberta de Adèle Axerchopoulos, que expressa tudo – desejo, gula, assombro – no Azul de Abdellatif Kechiche. Está em momentos privilegiados que compuseram a grandeza do ano. Kevin Costner olhando o filho criança que brinca e antecipando o super-herói em que ele se transformará no poderoso Homem de Aço, de Zach Snyder. O narrador tribal que reencontra o tempo perdido e as personagens de sua ficção, na verdade de suas memórias, num lance assim digno de Marcel Proust e de seu tempo reencontrado, em Zarafa, de Remi Bezançon. O canto dos trabalhadores no deslumbrante fecho da Angélica de Manoel de Oliveira. Ou a troca de olhares entre James Hunt e Nikki Lauda, entre Chris Hemsworth e Daniel Bruhl antes da decisiva corrida do Japão, em Rush, de Ron Howard.

A beleza e a grandeza do cinema está em filmes que não necessariamente ficaram entre os cinco, ou os dez. O grito de desespero de Charlotte Rampling, decifrado o enigma de Eu, Anna, em que ela foi dirigida por seu filho, Barnaby Southcombe. A desmontagem de Cate ‘Blanche Dubois’ Blanchett em Blue Jasmine, de Woody Allen. O pungente plano final, a morte do assassino profissional sentado naquela cadeira, frente ao mar e vendo o tempo, como sua vida, se escoar em Salvo – Uma História de Amor e Máfia, de Fabio Grassadonia e Antonio Piazza. A cena intimista do diálogo entre o anão e a elfa de Hobbit 2 – A Desolação de Smaug, de Peter Jackson, tão íntimo e revelador das diferenças que se compara às digressões amorosas de Hong sang-soo no filme mais nouvelle vague do ano que se encerra, Filha de Ninguém.

O cinema brasileiro participou dessas belezas, desses refinamentos. O duelo e a cena de sexo entre Fabrício Boliveira e Íris Valverde em Faroeste Caboclo, de René Sampaio. Formaram o casal hetero do ano, uma bela dupla birracial ocupando espaço no ano em que o par gay reinou soberano – as garotas de Azul, os homens de Um Estranho no Lago, de Alain Guiraudie. Talvez o grande legado do cinema no ano tenha isso esse olhar sobre o direito à diferença. O toque da elfa e do anão quando ela salva a vida dele em Hobbit 2 é uma possibilidade que vira impossibilidade em Blancanieves, no desejo do anão, belo como é, pela topureira no filme de Pierre Berger.

O cinema é a melodia do olhar, dizia o poeta Nicholas Ray. É uma janela aberta para a realidade, ou a fantasia, e de ambas as formas é um instrumento do humanismo e uma ferramenta para se entender o mundo. São Paulo é a grande personagem de Lina Chamie em São Silvestre e o filme sobre a corrida é, na verdade, sobre o esforço humano e, como investigação de linguagem, sobre o cinema. É um filme sobre tudo, mas alguém que não entre no clima de sua admirável simetria audiovisual dirá que é o oposto – sobre nada. Tudo ou nada. Não foi o grande Yasujiro Ozu que fez escrever na sua lápide, sem nome, o ideograma japonês de ‘nada’, de vazio? O cinema é uma invenção dos autores e uma reinvenção dos espectadores. Tudo está, no limite, no nosso olhar sobre o olhar que eles nos propõem. O voyeurismo, o espetáculo do corpo, está em Kechiche como em Guiraudie, malgrado suas diferenças. Então, vamos lá – o que foi o cinema, o que ainda está sendo em 2013?

O olhar paternal de Kevin Costner, o olhar doloroso de Henry Cavill, o vento que agita as folhas das árvores no Lago, os quadros de Emma/Léa Seydoux que, passada sua paixão por Adèle, eternizam o que foi aquele momento na vida de ambas.

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