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Scorsese filma a origem violenta da América

O Estado teve acesso à primeira sessão para a imprensa do aguardado Gangues de Nova York, novo longa do diretor, com Leonardo DiCaprio e Cameron Diaz, que trata das quadrilhas de criminosos que dominaram NY no século 19

Por Agencia Estado
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A primeira coisa a impressionar no amplo e movimentado escritório da Cappa Productions, produtora do cineasta Martin Scorsese instalada na Park Avenue, é a profusão de pôsteres originais de clássicos do cinema. Já na entrada, antes mesmo de a simpática recepcionista oferecer as boas vindas, a diva francesa Yvonne Printemps sorri para o visitante, vestida como A Dama das Camélias - no cartaz do filme homônimo de Abel Gance. Scorsese está terminando uma conversa com um de seus editores, e é preciso esperar um pouco. Na sala de espera, mais pôsteres - de Os Contos de Hoffmann, Orfeu e A Força do Mal - além de coleções de revistas como Cahiers du Cinéma e Sight and Sound, e roteiros encadernados de todos os filmes do cineasta. Num canto, perto de uma bicicleta ergométrica, 11 caixas com livros que Scorsese usou como pesquisa para seu novo filme, o muito aguardado Gangues de Nova York. O principal livro no qual se baseia o filme é o romance homônimo de Herbert Asbury, lançado recentemente no Brasil (Globo, 384 págs., R$ 43,00). Na manhã de quinta-feira, um grupo de 25 pessoas - a assessoria do diretor, críticos dos jornais norte-americanos Newsweek, Time e New York Times e alguns jornalistas estrangeiros, entre os quais a reportagem do Estado - assistiu, em primeira mão, a Gangues de Nova York. Na sexta-feira, sentado no sofá verde de sua luxuosa sala de projeção, Scorsese admite que a maratona tem sido estafante. "Tenho de dizer que estou bem cansado", conta o diretor. "Mas, ao mesmo tempo, sinto-me aliviado, pois vinha tentando fazer um filme desses há 30 anos e finalmente ele agora virou realidade." Scorsese chama Gangues de Nova York de o maior filme de sua carreira ("Só havia usado tantos extras assim no musical New York, New York, em 1977"). Desde que entrou em pré-produção, há dois anos, Gangues em Nova York está sob a lupa da imprensa. O especulado: desavenças homéricas entre Scorsese e o produtor Harvey Weinstein, poderoso co-chefão da Miramax que empregou nesse filme o maior orçamento da história dos 22 anos da companhia, US$ 100 milhões. Na pauta do estranhamento, estouro de orçamento, profusão de cenas sanguinolentas, longa duração e, por fim, inúmeros cancelamentos da estréia do filme. "Weinstein tem personalidade extravagante, mas ele é o único chefão com coragem para fazer um filme desses", explica Scorsese. "Em algumas situações, ele perdeu a cabeça; em outras, fiquei bastante esquentado. Em alguns casos, era tratado com bastante generosidade; em outros, tinha que cortar despesas para, por exemplo, justificar a participação, em cena, de um elefante, que eu fazia questão de ter." E acrescenta. "Depois do 11 de setembro, tivemos de repensar vários pontos, mas é incorreto dizer que, por conta do atraso do lançamento, Weinstein tenha perdido o entusiasmo pelo filme." Gangues de Nova York, que será lançado dia 21 de dezembro, nos cinemas americanos, e dia 17 de janeiro, nos brasileiros, é um triunfo cinematográfico; um espetáculo operístico que mistura a coreografia visual e corporal de westerns com filmes de samurai, sem sacrificar a eloqüência do importante e fervilhante cenário político dos EUA de 1863, que, a propósito, parece em sintonia com a atual cena americana. Scorsese poderá finalmente faturar um Oscar que lhe foi injustamente negado em várias ocasiões, no passado. Com uma melodia celta retrabalhada por Elmer Bernstein (um dos compositores favoritos de Scorsese), Gangues de Nova York começa com o religioso Priest Vallon (Liam Neeson), líder de uma gangue de irlandeses, a Dead Rabbits (Coelhos Mortos), preparando seus homens para enfrentar William Cutting, ou Bill, o Açougueiro (Daniel Day-Lewis), dândi que comanda uma gangue do movimento dos Nativistas, que quer acabar com a imigração irlandesa. Five Points - O local do enfrentamento é o Five Points, praça que resultava da confluência de cinco ruas e próxima ao hoje internacionalmente conhecido bairro do SoHo. Nessa espécie de Capão Redondo nova-iorquino, o jovem Amsterdam Vallon (mais tarde interpretado por Leonardo DiCaprio) vê seu pai ser morto por Bill. Ao retornar, seis anos mais tarde, Amsterdam encontra uma Nova York diferente: dos 60 mil habitantes de então, ela tinha passado a uma metrópole de 800 mil pessoas. Para se vingar da morte do pai, Amsterdam se infiltra na gangue de Bill, mas acaba se afeiçoando ao criminoso. Quando se quer saber se foi um garoto arruaceiro, em seus tempos de criança, no bairro de Little Italy, Scorsese revela ter tido uma infância mais parecida com a de Woody Allen. "Na verdade, eu era o menino asmático que foi levado a acreditar que não conseguiria ser muita coisa na vida", diz. "Meus pais, que não era muito esclarecidos, me entupiam de remédios e me privaram de exercício físico. Minha vida, então, era ir à igreja, aos cinemas e ficar observando os tipos selvagens da Rua Elizabeth, mas sempre fui fascinado pelas gangues." Após várias tentativas de fazer um filme épico sobre a Nova York do século 19, período formativo da cena política e social da cidade, o projeto de Scorsese só foi ganhar contornos definitivos quando Michael Ovitz, ex-superagente de Hollywood, propôs, ao diretor, uma parceria. "Michael, que foi o responsável por eu ter feito Kundun e Vivendo no Limite, montou uma companhia, em 1999, e propôs que Gangues de Nova York fosse realizado com dois de seus principais clientes, DiCaprio e Cameron Diaz", explica. "Eu sabia sobre o trabalho de Leo, pois De Niro fica sempre me apontando este ou aquele ator que acha promissor. Sempre achei que Leo tinha o estilo de interpretação de que gosto." Uma vez escalados DiCaprio e Cameron (que interpreta uma batedora de carteiras que vem a se envolver com Amsterdam), Scorsese e Weinstein foram atrás de Day-Lewis, afastado do cinema havia quase seis anos, período em que trabalhou como aprendiz de sapateiro na Itália e se casou com a filha do dramaturgo Arthur Miller, a cineasta e escritora Rebecca Miller. "Passamos três dias tentando convencer Daniel", conta Scorsese. "Por alguma razão, ele ainda estava bastante reticente em voltar. Mas eu lhe disse que ele faria toda a diferença para mim. Sinto uma grande identificação com o trabalho dele e, quando rodamos juntos A Época da Inocência, ele me ajudou a enfrentar o período da morte de meu pai." Daniel virou Bill - Do jeito de andar ao de cutucar seu olho de vidro, Day-Lewis dá um show de interpretação e, desde já, é um dos mais fortes candidatos para o Oscar de ator. Durante as filmagens, Scorsese, porém, não encontrou mais o profissional que contratara. "Do primeiro dia em diante, Daniel não falava mais com sua voz normal; ele era o Bill. Quando tinha alguma idéia, ia procurá-lo e dizia: ´Será que Bill acha interessante?´ E ele respondia. ´Ah, o Bill acha, sim´", conta Scorsese, dando uma prolongada gargalhada. "Daniel ouvia o rapper Eminem, ao fazer ginástica, pela manhã, e assim sustentava durante o dia todo a risonha raiva de que o personagem precisava." Já é notório o fato de Scorsese gostar de assistir a filmes para se inspirar, antes de começar um novo projeto. Em outra entrevista concedida ao Estado, há três anos, o diretor revelou que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, o inspirara a filmar Vivendo no Limite. Desta vez, ele quis rever Da Terra Nascem os Homens (The Big Country), filme de William Wyler em que há a cena de luta que Scorsese considera uma das mais eletrizantes do cinema, entre os personagens de Charlton Heston e Gregory Peck. Embora tenha começado oficialmente na sexta-feira a divulgação de Gangues de Nova York, Scorsese está também tocando outros projetos. Ao terminar a entrevista, o diretor mostra uma de suas salas de edição, onde está montando um projeto ambicioso: uma minissérie para a TV sobre a história do blues, com episódios dirigidos por Clint Eastwood, Wim Wenders e Charles Burnett. O segmento dirigido por Scorsese faz uma ponte entre o blues do Delta do Mississippi com o da África. No dia da entrevista, o cineasta examinava uma seqüência filmada em Mali com o músico Ali Farka Touré. Scorsese também discorre sobre o fato de estar produzindo o remake de Céu e Inferno, filme Akira Kurosawa, possivelmente para Walter Salles dirigir. "Em 1989, Akira pediu para que eu refilmasse esse drama noir sobre um seqüestro, mas nunca tinha pensado em como atualizá-lo. E, agora, Walter trabalhou sobre o roteiro e apresentou uma solução genial", revela.

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