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'Santiago' e 'Ratatouille' estão entre os melhores filmes do ano

Confira a opinião do critico de cinema do 'Estado' sobre a produção nacional e estrangeira

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

É um dos momentos de maior empatia com o público, em Jogo de Cena. A entrevistada diz que chora assistindo a Procurando Nemo e puxa uma conversa sobre animação com o diretor Eduardo Coutinho. Ele não gosta. Ela diz - e Marília Pêra, que interpreta o papel, é ainda mais irônica na repetição da fala - que Coutinho não gosta porque é comunista, é contra Hollywood etc. Veja mais comentários e trechos dos filmes 'Jogo de Cena' e 'Em Busca da Vida', os melhores da telona Talvez seja um bom início de conversa para se falar dos melhores do cinema em 2007. Há, como diz o próprio título, um poderoso jogo de cena que embaralha ficção e documentário no novo (grande) filme de Eduardo Coutinho, um jogo de cena que testa o próprio conceito do documentário. Coutinho, de alguma forma, está querendo dizer que o entrevistado de um documentário pode ser o ficcionista de si mesmo, que o importante é sempre a verdade - a emoção - do seu depoimento. Coutinho arma o jogo de cena, mas de alguma forma se preserva e dirige o foco do seu interesse para o outro - mais exatamente, para as outras. Há outro jogo de cena em Santiago, de João Moreira Salles, mas lá, na conversa com o mordomo, o diretor expõe seu método e se sujeita a críticas pelo autoritarismo em relação ao personagem que não deixa de ser o serviçal da casa de seu pai. Jogo de Cena e Santiago foram os dois maiores filmes brasileiros do ano e talvez o segundo, com sua reconstrução proustiana do tempo perdido, seja ainda mais denso e profundo - o documentário que Luchino Visconti poderia ter feito, para refletir sobre a derrocada da sua classe social, do seu mundo aristocrático. O mais curioso - e, como brincadeira, se poderia dizer que a afirmação talvez horrorize Coutinho, dentro daquele espírito do que dizia sua entrevistada - é que o maior filme estrangeiro foi também um ensaio proustiano sobre o tempo perdido e reencontrado, mas não com atores nem com gente de carne-e-osso, mas uma animação. A cena de Ratatouille em que o crítico, provando o prato que o ratinho que sonha ser chef lhe preparou, é a madeleine da animação, um prodígio de técnica e emoção que, se fosse necessário escolher uma só cena para resumir o ano todo nas telas, bem poderia ser esta. Ratatouille, Santiago - e Proust. Que ano! Dois documentários brasileiros e nenhum estrangeiro. Estabelecida a convenção de dez destaques - os dez melhores filmes do ano -, o cinema brasileiro comparece com mais um título, mas agora é uma ficção, A Casa de Alice, de Chico Teixeira, com a melhor interpretação feminina do ano, a de Carla Ribas. Os demais seis destaques estrangeiros - o sétimo é Ratatouille - são todos ficções. O alemão A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, reabriu a vertente do clássico 1984, de George Orwell, para discutir, filosoficamente, a verdade como o sistema de mentiras no qual se esteia a sociedade, mas engana-se quem pensa que o diretor está falando somente da antiga Alemanha Oriental e de sua polícia secreta, a Stasi. A abrangência de A Vida dos Outros é muito mais ampla e o filme ainda trouxe o maior intérprete masculino do ano, Ulrich Mühe, que morreu em julho. Bergman e Antonioni Foi, por sinal, um ano de grandes perdas - morreram (no mesmo dia!) Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, dois grandes cineastas, um sueco e outro italiano, que estabeleceram, desde os anos 50, a reputação de ‘autores’. Outro grande que veio da mesma década - Alain Resnais - chegou absolutamente lúcido aos 85 anos e mostrou, com Medos Privados em Lugares Públicos, que a idade só lhe aumenta a maturidade. Resnais, velhinho pelos padrões de uma sociedade que cultua o novo, consegue ser jovem, intelectualmente, como o chinês Jia Zhang-ke, homenageado da Mostra Internacional de Cinema São Paulo deste ano. Jia veio à cidade para falar sobre seu cinema e as transformações que atingem a China, agora capitalista - e Em Busca da Vida (Still Life) é o extraordinário testemunho deste mundo em transe. Da China também veio A Maldição da Flor Dourada, de Zhang Yimou, aventura de artes marciais que encerra a trilogia do diretor, iniciada com Herói e que teve prosseguimento com O Clã das Adagas Voadoras. Zhang Yimou fez não apenas seu filme mais suntuoso, plasticamente, mas também elevou as artes marciais ao patamar da tragédia shakespeariana, já que o personagem do imperador, interpretado por Chow Yun-fat, é o Rei Lear da China. Para prosseguir com o diálogo Oriente/Ocidente, já que ambos compõem um díptico, pode-se considerar A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima um só filme de Clint Eastwood, com sua duplas visão do horror da guerra no Pacífico, do ângulo dos norte-americanos e dos japoneses. Resta, ainda, um filme estrangeiro e é Pecados Íntimos, de Todd Field, com a outra grande atriz de 2007, Kate Winslett. (Aliás, se estão sendo destacadas duas atrizes, uma nacional e outra estrangeira, também se pode destacar mais um ator brasileiro e, embora Rafael Raposo, de Noel - Poeta da Vila, e Selton Mello, de O Cheiro do Ralo, sejam irrepreensíveis, ele bem poderia ser o excepcional Wagner Moura de Tropa de Elite, de José Padilha, o mais polêmico filme brasileiro do ano.) Pecados Íntimos fala de família, de culpa, de compaixão. A cena em que o pedófilo corta o próprio sexo e é socorrido pelo policial que queria matá-lo é outro momento maior do ano. Pode não ser tão ‘estética’ quanto a do crítico em Ratatouille, mas, Deus!, que aquilo é pungente, e doloroso. Não houve perdão mais belo em 2007.

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