"Sanguinaires" mostra pequenos tiranos

Filme de Laurent Cantet, que estréia nesta sexta nos cinemas brasileiros, faz de uma festa de réveillon um apólogo político

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Por Agencia Estado
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Sanguinaires, a Ilha do Fim do Milênio, de Laurente Cantet, faz parte do projeto 2000 vu par..., promovido pela televisão francesa Arte, que reuniu trabalhos de dez cineastas do mundo todo. O tema de cada produção era livre, mas precisava conter alguma cena passada na virada do milênio. Daí saiu, por exemplo, o excelente O Primeiro Dia, de Walter Salles e Daniela Thomas. A proposta de Cantet não é menos interessante. Ela mostra um grupo de amigos que resolve se refugiar da badalação global montada em torno da (suposta) passagem do milênio - esta se daria apenas no ano seguinte, de 2000 para 2001, mas quem liga para a exatidão da cronologia? O que vale é o fetiche dos números redondos. Em todo caso, armou-se um frisson mundial. Todo mundo queria estar em Paris, Nova York, Rio - os réveillons badalados. François (Fréderic Pierrot) e sua turma resolvem remar contra a maré. Descobrem uma pequena ilha, que abriga um farol, nas costas da Córsega. Longe de tudo e de todos. Há uma grande casa de veraneio no lugar, que recebe muitos turistas no verão. No inverno está deserta. Mais ainda no revéillon do milênio. Na verdade, na ilha só há o vigia, Stéphane, um rapaz bastante insolente. Ele será a única companhia do grupo de François, que chega à ilha sob a promessa solene de não utilizar celulares, ouvir rádio ou ver TV. Internet, então, nem pensar. O tom escolhido é o realista, sem maiores firulas. Diálogos naturalistas e busca da verossimilhança como ponto de honra. A jogada interessante de Cantet (diretor do contundente A Agenda, sobre os efeitos do desemprego na Europa) é fazer de sua história um pequeno apólogo moral. A situação descrita é a de seres em confinamento, mesmo que por um pequeno período. São amigos, intui-se que se conhecem há muito tempo, se freqüentam, etc. Mas logo começam a surgir conflitos entre eles, em boa parte por causa desse jejum auto-imposto. Em aparência, gente moderna não consegue mais viver sem seus gadgets, mesmo que por pouco tempo. O que fazer sem um celular, sem trocar e-mails, sem a TV? Como preencher o tempo livre? Conversando? Não: agredindo-se uns aos outros. O filme fala, portanto, da inaptidão moderna para o convívio simples. Mas não apenas. Fala também do seu contrário, da angústia causada pela busca obrigatória de algum tipo de simplificação, como aquela proposta por François. Ele inventou o passeio, estabeleceu as regras de abstinência e elegeu a si mesmo o fiscal do seu cumprimento. Logo que o grupo dá sinais de fraquejar no voto de castidade tecnológico, vemos surgir um tiranete disposto a tudo para levar seu projeto adiante. François sabe (julga saber) o que é melhor para todos. E, em nome da coletividade, para o "bem comum", exercerá o poder que ele mesmo se outorgou. É fácil ver a alusão política desse tipo de situação familiar. Um ditador sanguinário (qualquer um que você imaginar) não passa de um François em escala maior. Esse tipo de coisa sempre dá em desastre, e a história do filme não é exceção. Felizmente, esse pequeno ensaio sobre o autoritarismos e suas conseqüências vem temperado pelo humor, pelo menos durante algum tempo.

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