Sabotage, da bandidagem para as telas

Rapper dá o tom em filmes nacionais como O Invasor, de Beto Brant e a versão do cineasta Hector Babenco para Estação Carandiru, de Dráuzio Varela

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Por Agencia Estado
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Há uns 10 anos, se você encontrasse com o sujeito na rua, era melhor começar a rezar. Quatro meses de Febem, um "emprego" de soldado do morro, um "ferro" na cintura, uma turma de amigos que incluía a nata da bandidagem, e Sabotage parecia ter um destino certo a cumprir. Sua influência mais marcante, na infância, fora um tio que cumpre 28 anos de prisão no Carandiru, presídio da zona norte de São Paulo. Mas Sabotage também gostava de arriscar umas rimas e cantar. Sua arte era apreciada na Favela do Canão, nas Águas Espraiadas, onde cresceu. Um dia, lembra, roubou um quilo de cocaína e separava os papelotes num terreno baldio quando sentiu uma presença às costas. Era um dos maiores traficantes do morro, Chambau. "Um cara desse tipo nunca chega tão perto sem te queimar antes", conta. Mas Chambau era também uma espécie de "padrinho" da favela. Ele disse a Sabotage: "Mano, você sabe cantar, larga isso aí, não é coisa para você." E Sabotage largou a bandidagem. "Eu dava trabalho para esse pessoal aqui da área, era terrorista, andava armado, ninguém chegava perto de mim", explica, cumprimentando uma a uma, pelo nome, as senhoras que vivem no conjunto habitacional onde mora atualmente, na zona sul de São Paulo. "Hoje, o neguinho deu a volta por cima", considera. Sabotage está certo: no mundo cada vez mais seletivo do rap, ele é a bola da vez. Convidado em discos de Charlie Brown Jr. e Rappin´ Hood, produzido pelos Racionais MCs, atuando no cinema e cortejado por gravadoras e selos alternativos, ele inverteu seu destino. "Hoje eu vivo de show, ajudo os irmãos com isso aí, ainda vou tirar bastante ladrão do crime", diz. Sua estratégia é engajar os antigos companheiros no rap, torná-los músicos, letristas, MCs, empresários. "Quando não tem atividade, o mano vai pensar em bobeira, põe um ferro na cintura e mete bala nos irmãos", considera. "Não tem nem sequer palavrão no meu rap", emenda, como se reafirmasse a conversão. Há algumas semanas, no Festival de Brasília, Sabotage subiu ao palco para receber, ao lado do titã Paulo Miklos, o prêmio de melhor trilha sonora pelo filme "O Invasor", de Beto Brant (trilha da qual participaram também Pavilhão 9, Tolerância Zero e Professor Antena). "Pô, nunca fui tão fotografado", festeja Sabotage. "Eu tava descabelado no dia que ganhei, não tinha um puto." Ele conta que, quando foi convidado pelo cineasta Beto Brant para fazer uma ponta em O Invasor, ouviu, um dia, uma fala do personagem bandidão do filme, Anísio, interpretado por Miklos. "O cara chegava e cumprimentava assim: Oi, tudo bom?", lembra, com uma ponta de ironia. "Isso não existe. Eu ajudei a reescrever aquilo: ´Aí, irmão, firmeza? Na ordem?´ É assim que ele tem de chegar", aconselhou. "Tomei muita coisa emprestada do Sabotage, o jogo de corpo, as expressões faciais, a linguagem", conta Paulo Miklos, que ganhou o prêmio de ator revelação (criado justamente para ele) pela interpretação. Para Miklos, o rap não é algo exterior em Sabotage, mas parte de sua personalidade - toda sua linguagem é rap, toda ela preenchida de personagens e brincadeiras de sua vida cotidiana. Osmose - "Acho até que teve um lance de osmose, peguei um pouco do jeitão dele, embora meu personagem não seja do movimento do rap, é um cara mais velho, sem engajamento", prossegue Miklos, que também teve aulas de beatbox (som percussivo com a boca) com o mestre. "Ih, rapaz, foi duro ensinar o cara", declara o rapper. Sabotage acabou virando uma espécie de ponte pênsil entre a bandidagem e o restante do mundo, especialmente o das artes. Outro diretor que não teve dúvida em convidar o rapper para introduzi-lo nos subterrâneos da marginalidade foi Hector Babenco, que está filmando a versão cinematográfica de Estação Carandiru, de Drauzio Varella. No filme de Babenco, ele vive o detento Fuinha. Conta que leu o livro de Varella até a página 147. Tenta decorar falas mas acha que o melhor é ser apenas ele mesmo. "Gosto do Hector (Babenco), gosto do Brant, os filmes deles foram os únicos que levaram a favela a ver cinema", pondera Sabotage, fã incondicional de Pixote - A Lei do Mais Fraco e Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia. "São esses filmes que representam a gente." No universo do rap, Sabotage julga-se uma figura com algum tipo de especificidade. "Os Racionais conhecem o crime, mas não viveram o crime", diz. Babenco confia nele para tratar do tema. Cena refeita - Numa cena de Carandiru, o diretor pretendia mostrar que um detento matava outros dentro do presídio, durante a limpeza, indo de pavilhão a pavilhão. Sabotage mal pode conter o riso. Ele mostrou a Babenco que aquilo carecia de verossimilhança, que não era possível aquele trânsito de um único detento pela penitenciária, sozinho. Muito menos "disfarçado" de integrante da equipe de limpeza. O cineasta mudou a cena. Mas o rapper também gosta de aprender. "O Hector não gosta de música em filme, gosta de filme que fala com o olhar, com as imagens", lembra. "Acho que ele tem razão, o véio sabe o que faz." A ética da favela é seguida com rigor por Sabotage. O principal mandamento é não se esquecer de quem o ajudou a se erguer. A entrevista é cercada de amigos, parceiros e colaboradores. O Velho Lila, que cumpriu pena por latrocínio em 1979, é quem mostra como funciona essa ética: "Não esquece do véinho, senão eu vou te queimar", afirma. Aos 28 anos, Sabotage é filho de Julião, "que puxa carroça, forte como um touro", e órfão de mãe. Pai agora de três filhos - Wanderson, Tamires e Larissa - , Sabotage ameniza o discurso. Na vida profissional, conta que é "bola de meia", um artista tranqüilo, sem pressa. Chambau financiou seu primeiro trabalho. O "padrinho" foi assassinado algum tempo depois. No ano passado, os Racionais MCs investiram R$ 30 mil para produzir seu primeiro álbum, Rap É Compromisso" (selo Cosa Nostra), que ele diz que está embargado na Sony Music - por problemas entre produtores e a gravadora. O disco, difícil de achar até nas galerias do centro de São Paulo, por conta do imbróglio, tem participações de Black Alien, Rappin´ Hood, P3, R.Z.O. e Meire (Gueto Z.o). "Sabe como eu sei que minha música deu certo?", pergunta Sabotage. "Por causa dos calotes que comecei a tomar", diz, rindo. Pequeno dicionário emergencial para começar a entender o rap de Sabotage: Eu tava descabelado - Estava totalmente sem dinheiro Tirou uns dias - Foi preso, está na cadeia Se eu cair - Voltar ao crime Eu sou bola de meia - Encara as coisas com tranqüilidade sem afobação Moscando no barraco - Tirando um cochilo de tarde, descansando em casa Eu era terrorista - Era bandidão, andava armado Cheio de goró - Embriagado Ele vende farinha - É traficante de cocaína Cabriteiro - É o nome para ladrão de carros Bicos - Curiosos Ficar de chapéu atolado - Enlouquecer Se sentir a mortadela - Achar que é o máximo Se sentir a última da geladeira - O mesmo que "se sentir a mortadela". A última da geladeira é a que todo mundo quer beber Mande um salve - Agradeça Mil grau - Está tudo ótimo, excelente, tudo correu às mil maravilhas Comendo a sardinha maior - Enriquecendo, levando vantagem sobre os outros

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