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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Rosebud

Foi no Brasil que Welles teve seu primeiro reconhecimento internacional como diretor

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Atualização:

Na noite de 26 de fevereiro de 1942, quando a Academia de Hollywood fez sua 14.ª distribuição de Oscars com Cidadão Kane concorrendo a nove estatuetas, Orson Welles estava no Rio havia 18 dias. Viera filmar o inacabado It’s All True. Em sua homenagem, a RKO providenciou o relançamento, na cidade, de Cidadão Kane e os críticos de cinema cariocas aproveitaram a ocasião para premiar Welles com um diploma de “melhor diretor” do ano, festivamente entregue ao cineasta no palco do há muito desativado Cine Plaza, na Rua do Passeio. Foi, portanto, no Brasil que Welles teve seu primeiro reconhecimento internacional como diretor. A Academia só lhe concedeu o Oscar de melhor roteirista, ex-aequo com Herman J. Mankiewicz. Ou seja, a Academia não duvidava que o roteiro do filme tivesse sido confeccionado a quatro mãos. Com um e outro palpite, acrescento eu, de John Houseman, braço direito de Welles, escalado para monitorar o trabalho e a dipsomania de Mank.  Se por ventura as memórias e biografias dos citados tivessem deixado alguma dúvida a respeito, duas esmeradas pesquisas, de Robert L. Carringer e Harlan Lebo, foram a pá de cal na polêmica tese de Pauline Kael, que nem se deu o trabalho de entrevistar Welles e alguns de seus colaboradores, ainda vivos quatro décadas atrás, antes de atribuir a Mank a autoria plena do roteiro do filme.  A de pesquisa de Lebo, Citizen Kane: A Filmaker’s Journey (Thomas Dunne Books, 2016), só por estes dias fui ler, no embalo de Mank, em exibição na Netflix. É uma mina de informações curiosas e muito bem embasadas, com quase todas as respostas às perguntas que leitores de meu artigo sobre Mank, publicado no Aliás de domingo passado, me fizeram ao longo da semana. Contratado com uma liberdade autoral jamais concedida a outro cineasta, Welles chegou a Hollywood em julho em 1939, a convite de George Shaefer, o audacioso mandachuva da RKO. Seu primeiro projeto seria uma adaptação do romance de Joseph Conrad, Coração das Trevas. Por seu custo elevado, acabou cancelado pela “economia de guerra”.  Espectadores consultados pelo Gallup, a pedido do estúdio, preferiam que Welles estreasse repetindo na tela o sucesso radiofônico de A Guerra dos Mundos. Não rolou. Como também não rolou o thriller The Smiler With a Knife, tirado do colete para tapar buraco enquanto Welles matutava o que viria a ser Cidadão Kane. A primeira conversa de Welles com Mank sobre o projeto ocorreu em janeiro de 1940, na sublocada casa do roteirista, em Beverly Hills, Los Angeles. Mank deitado em sua cama e Welles refestelado na de Sara, mulher do roteirista. A ideia de se contar a vida de um figurão, através de múltiplos testemunhos de amigos, Welles tirou de uma peça de Susan Glaspell, Alison’s House, Pulitzer de 1931, que ele assistira na Broadway aos 16 anos.  Welles primeiro pensou na atribulada vida do bilionário do petróleo Howard Hughes e na do ex-presidente Theodore Roosevelt, para fechar com a sugestão de Mank, que se tornara íntimo do barão da imprensa William Randolph Hearst e sua amante Marion Davies. Também de Mank foi a sacada do cinejornal March of the Time como suporte narrativo.  O enigmático “Rosebud” pintou nos primeiros encontros, como mero gimmick para amarrar o fluxo de testemunhos, não mais do que isso, segundo Welles, que sempre refutou as explicações freudianas (símbolo da inocência perdida, etc) a respeito.  Seu significado custou a ser elucidado. Mank, de molecagem, espalhou que “rosebud” (botão de rosa) era como Hearst se referia ao clitóris de Marion. Outro comensal do palácio San Simeon, o Xanadu de Hearst, revelou ser o apelido familiar de Phoebe, mãe do magnata.  A versão mais decorosa e bonita só veio a público em março de 1970, durante uma entrevista do crítico Andrew Sarris com o cineasta Joseph L. Mankiewicz, irmão mais novo do roteirista. Rosebud era a marca não de um trenó, mas da bicicleta que o menino Herman ganhou de Natal e lhe foi roubada três ou quatro dias depois. Até o fim da vida, sempre que enchia a cara, Mank resmungava, obsessivamente, “Rosebud...Rosebud”.  Para a primorosa sequência em que a deterioração do casamento de Hearst com Emily é descrita em flashes de sucessivos cafés de manhã do casal, inspirou-se na peça de Thornton Wilder, The Long Christmas Dinner. Welles chegou a agradecer ao dramaturgo por escrito, pela involuntária inspiração. Assim como, durante a produção do roteiro, Charles Foster Kane ganhou, alternadamente, dois outros sobrenomes (Foster Rogers e Foster Craig), o filme, de início batizado American, ganhou o provisório título de John Citizen, U.S.A. ao ser anunciado no relatório anual da RKO dirigido aos acionistas do estúdio. Mank não toca nesse pormenor, pois cobre apenas o período em que Mank e Welles, trocando ideias freneticamente, concluíram o primeiro tratamento.  Welles detestou as primeiras páginas que Mank escreveu, podou quilômetros de diálogos que, apesar de brilhantes, atravancavam o fluxo da narrativa, mas não deixou de reconhecer sua incalculável dívida com o experiente roteirista.  Por fim, mais um detalhe sobre Louis B. Mayer, chefão da MGM e áulico de Hearst. Ele não apenas produziu os falaciosos filmes de propaganda contra a candidatura do democrata Upton Sinclair ao governo da Califórnia em 1934, para agradar à direita republicana, como se prontificou a comprar o negativo e todas as cópias de Cidadão Kane para incinerá-los antes do lançamento, para agradar a Hearst. Amigo fiel, caráter zero.  É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

Opinião por Sérgio Augusto
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