Romance de Ricardo Piglia chega às telas de SP

Plata Quemada virou filme de sucesso, dirigido e adaptado por Marcelo Piñeyro. É cartaz de hoje a quarta do 9.º Mix Brasil e estréia em circuito comercial na sexta

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Por Agencia Estado
Atualização:

Plata Quemada, quarto longa-metragem do argentino Marcelo Piñeyro, será exibido hoje, amanhã e quarta-feira, no Festival Mix Brasil. Na sexta-feira, chega ao circuito comercial. O resultado de bilheteria dos quatro longas de Piñeyro nada tem a ver com a sina da grana roubada pelos dois protagonistas de Plata Quemada, os marginais e amantes Nene e Angel. No livro de Ricardo Piglia, que lhe deu origem, e no filme, o dinheiro vira cinza. Na vida real, Plata Quemada (a tradução do título seria Dinheiro Queimado, como o livro de Piglia foi lançado no Brasil) acumulou muita grana. Foi visto por 800 mil argentinos, 300 mil espanhóis e vendido para dezenas de países (incluindo os EUA). O sucesso faz parte da vida de Piñeyro. Ele produziu História Oficial, de Luiz Puenzo, o único Oscar conquistado por um filme latino-americano. Depois, aos 35 anos, estreou na direção com Tango Feroz (no Brasil, Música Feroz). O filme estourou. Fez um milhão de espectadores ao contar a história do roqueiro Tanguito, morto precocemente. Repetiu os mesmos índices com Cavalos Selvagens (inexplicavelmente inédito no Brasil). O filme seguinte - Cinzas no Paraíso - também fez sucesso e ajudou a consolidar a carreira da mais badalada das atrizes argentinas da atualidade: a almodovariana Cecília Roth. Plata Quemada tem tema explosivo: o amor homossexual vivido por dois atores talentosos e muito bonitos. Um deles, Leonardo Sbraglia, é ator-fetiche do diretor. Trabalharam juntos em Cavalos Selvagens, Cinzas no Paraíso e estarão juntos no próximo, Kamchatka. O que o cativou no livro de Ricardo Piglia? Marcelo Piñeyro - Os personagens. Essa "parelha" de amantes malditos, que só consegue encontrar no outro o seu lugar no mundo, foi um atrativo irresistível desde a primeira leitura que fiz do livro. Piglia criou os personagens mais poderosos da ficção argentina recente. Também me interessou a filiação do texto ao gênero "noir" e a possibilidade de narrar uma história de amor e redenção, atração e rejeição. O que "Plata Quemada" tem em comum com seus projetos anteriores? Creio que Plata é muito diferente, mas, ao mesmo tempo, tem muito em comum com eles. Todos os meus filmes se inscrevem em gêneros determinados. Neste caso, o "noir". Este é um ponto em comum. Posso, também, relacionar meus filmes tematicamente. Creio que, em todos eles, os protagonistas estão fora do sistema. Em Plata Quemada, os personagens são mais radicais nesta direção. Nos meus filmes anteriores, "sair do sistema" era uma opção realizada pelos personagens. Já em Plata não há opção. Os personagens estão condenados à marginalidade. Não há escolha possível. Outro tema importante em meus filmes é a colisão que se produz entre o desejo do indivíduo e os legados (tanto familiares quanto sociais) que ele recebe. Estou convencido de que o resultado dessa colisão determina quem somos, nossa verdadeira identidade. Meus quatro filmes têm em comum um forte componente romântico, no sentido maldito e exasperado do termo. Há, em Plata Quemada, diálogo explícito com "Aquele Que Sabe Viver" ("Il Sorpasso"). A trilha sonora também traz canções italianas dos anos 60. No Festival de Veneza, ano passado, comentou-se que um filme argentino, o seu, prestava sincera homenagem a Vittorio Gassman, enquanto o comando veneziano o confinava a sessão quase secreta. Nos anos 60, a influência da cultura européia era muito forte na Argentina, especialmente a francesa e a italiana. Suas cinematografias eram popularíssimas entre nós, assim como sua música. Possivelmente por causa do enorme fluxo migratório de raiz italiana, verificado entre nós. A comédia popular vinda da Itália tinha tal impacto em nossos cinemas, que frases ditas por Vittorio Gassman ou Alberto Sordi em seus filmes se transformavam em parte de nosso acervo. Isso acontecia, creio, porque o argentino urbano se sentia totalmente representado no cinema italiano da época, em especial pelas comédias. Um filme como Il Sorpasso impôs modas, frases e expressões que definiam formas reconhecíveis de conduta. Hoje, quase 40 anos depois do êxito de Il Sorpasso, nós usamos esta palavra para denonimar certo tipo de comportamento. Como a ação de Plata Quemada se passa em 1965, procuramos mostrar o quanto havia de proximidade entre o cinema italiano e o comportamento de nossa juventude. O personagem Cuervo (Corvo), um tipo muito reconhecível do "portenho" desta época, busca seus procedimentos, gostos e até modos de vestir-se no modelo encarnado por Vittorio Gassman. O argentino Leonardo Sbraglia é uma espécie de ator-fetiche do diretor Piñeyro. Já o espanhol Eduardo Noriega é novidade em seus elencos. Por que você o quis na explosiva dupla de amantes? Para ser sincero, não sei bem o que quer dizer "ator-fetiche". O que sei é que Leo (Sbraglia) é um grande ator. Gosto muito de trabalhar com ele e há, entre nós dois, relação de absoluta confiança. Desde que comecei a escrever o roteiro, sabia que ele seria Nene. O problema era o personagem Angel. Que ator representaria simultaneamente sua fragilidade e ferocidade, sua vulnerabilidade e fortaleza? Eu nunca tinha trabalhado com Noriega. Havia visto alguns trabalhos dele em Tesis (Morte ao Vivo) e Abra los Ojos (ambos dirigidos por Alejandro Amenábar). Me impressionaram muito. Enviei, então, o roteiro para ele. Em três dias, ele respondeu que daria a vida pelo papel. Uma das mais belas cenas do filme reconstitui o que podemos chamar de uma "Pietá gay". Os dois protagonistas estão cercados, um deles gravemente ferido. O outro o acolhe nos braços. Michelangelo foi sua fonte de inspiração? Os críticos, franceses em especial, realmente viram uma citação da Pietá na composição da seqüência final do filme. E usaram a expressão "Pietá gay". Naquele momento, os dois protagonistas estão cercados. Um deles está gravemente ferido. O outro o toma em seu regaço para reconfortá-lo. O abraça, sustentando-o carinhosamente em seus últimos momentos de vida. Sua intenção, claro, é converter em eternos aqueles instantes fugazes e derradeiros. Usa até a metralhadora, para que ninguém perturbe a calma e o final de seu amigo/amante. Os dois estão rodeados de fogo, destruição, fumaça, cheiro de pólvora, sangue... É, claro, um momento de redenção. A redenção que, só no amor do outro, esses amantes malditos podem encontrar. A Pietá de Michelangelo esteve sim em nossas mentes quando rodamos a seqüência. Você é produtor de "História Oficial", de Luiz Puenzo, único Oscar do cinema latino-americano. O que este trabalho significou para sua carreira? Ter participado de História Oficial foi fundamental para minha carreira e minha vida. Eu havia concluído meus estudos de cinema e não chegara, ainda, aos 30 anos. Participar do filme era, para mim, a confirmação de que meus desejos eram possíveis. História Oficial terminou sendo o motor de tudo que aconteceu, depois, na minha vida. Desde que me entendo por gente, sonhava fazer cinema. Mas, durante a ditadura militar, pensava que este sonho só era possível para quem nascia em outras latitudes. Quando me vi ali, nas filmagens, fui tomado pela sensação de que nada de melhor poderia me ocorrer. Aí vieram as primeiras projeções do filme, a reação emocionada do público, as reflexões e controvérsias que ele provocava. Tudo isso me fez sentir e concluir que finalmente eu encontrava um sentido mais profundo para meu desejo de fazer cinema. Depois veio o Festival de Cannes, os prêmios, as estréias internacionais, o Oscar... Você é, dos cineastas argentinos (junto com Fernando Solanas), o que mais incentiva o diálogo com o cinema brasileiro. Há condições para que os dois países aprofundem seus laços na área do cinema? Sou apaixonado pelo Brasil, por sua cultura, sua profunda e irrenunciável identidade. E gosto muito do cinema brasileiro. Por outro lado, estou convencido da importância de unificar e consolidar o mercado ibero-americano para nossos filmes. Se alcançarmos este objetivo, creio que poderemos consolidar uma das indústrias audiovisuais mais significativas do planeta. Plata Quemada (Plata Quemada). Direção de Marcelo Piñeyro. Hoje, às 16 horas, amanhã e quarta, às 20 horas, no Espaço Unibanco 1. Rua Augusta, 1.475. Exibição integra o 9.º Mix Brasil. Informações: www.mixbrasil.org ou tel. 3819-5116.

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