Caetano Veloso no documentário 'Narciso em Férias' VideoFilmes
Caetano Veloso fala sobre o documentário 'Narciso em Férias', que estreia no Festival de Veneza e no qual relembra sua prisão pela ditadura; veja o trailer
Atualizado
Caetano Veloso no documentário 'Narciso em Férias' VideoFilmes
Autor de um filme ensaístico, godardiano – Cinema Falado, de 1986 -, Caetano Veloso recebeu duras críticas na época. Muita gente foi contra, como se ele, por ser cantor e compositor, não pudesse se exercitar em outra seara. Caetano continuou ligado ao cinema pela música, mas nesta segunda, 7, um dia tão especial, será ator – e coautor – de um filme sobre o episódio de sua prisão, durante a ditadura militar.
Às 14h (9h no Brasil), Narciso em Férias terá sessão especial, fora de concurso, no Festival de Veneza. Convidado a dirigir o documentário, Renato Terra chamou o amigo e parceiro Ricardo Calil – fizeram juntos Uma Noite em 67, são roteiristas no Programa do Bial – para codirigir. Caetano solta o verbo. Conta, e até canta. Um filme simples, mas de uma riqueza excepcional. À tarde, estará disponível na Globoplay. Os diretores estão cheios de expectativa.
À imprensa italiana, Alberto Barbera, que faz a seleção, já disse que a edição deste ano é mais experimental. Colocou Narciso em Férias como um de seus três favoritos. A entrevista a seguir foi feita por e-mail. Fala, Caetano.
A ideia de fazer o filme, a escolha dos diretores e da locação para as filmagens da entrevista nasceram de Paula Lavigne. Em princípio, minhas falas serviriam de base para um documentário mais aberto, com outros entrevistados e outras locações. O Renato e o Ricardo é que, vendo o material, decidiram que ali estava tudo o que o filme precisava. Eles se aconselharam com os irmãos Moreira Salles e esses os encorajaram a manter a entrevista, pura e seca, como sendo o todo do filme.
Narciso em Férias me lembra uma consideração feita por Godard de que um filme poderia reduzir-se a apenas uma câmera diante de uma pessoa contando uma história. Acho que essa conversa godardiana é até citada em O Cinema Falado.
Porque vinha há algum tempo sugerindo à Companhia das Letras que editasse o capítulo Narciso em Férias, de Verdade Tropical, como um livro autônomo. Acho até que falo disso na nova introdução que escrevi para a edição comemorativa que saiu em 2017. É o capítulo do livro de que eu mais gosto. Quando a editora concordou em publicar o texto num livro separado, Paula Lavigne se interessou em fazer um documentário sobre o assunto tratado ali. Ela dizia achar muito errado que, como a notícia da nossa prisão, minha e de (Gilberto) Gil, nunca pôde sair na imprensa da época – e já era notícia velha quando a abertura lenta, segura e gradual de Geisel deu seus frutos –, os brasileiros mais jovens nem soubessem que tal coisa tinha acontecido. Nós tínhamos gostado muito de Uma Noite em 67, então a eleição de Renato e Ricardo era coerente. A sala vazia e ainda inconclusa da Cidade das Artes era um lugar que ela achou adequado para gravar a entrevista. Tinha a neutralidade e a secura das paredes de concreto. E entre 2017 e 2020 a vida política brasileira mudou muito. Então a secura que me impedia de chorar e ejacular podia ser narrada no tom certo e ser ouvida num momento em que os sintomas de ‘mais-repressão’ são agudizados na nossa sociedade. Coincidiu que se desenvolvesse a possibilidade do filme com a onda reacionária que toma conta do País e de grande parte do mundo.
Estava falando para informar os diretores e oferecer uma linha básica para o documentário. Eles viram que a fala, em si, tinha tudo que precisavam. Gosto de que você ouça ali um fluxo de consciência. Há algo de uma psicanálise pública. Quando eu revir o filme, vou observar esse aspecto.
É o que importa agora. Há sempre a esperança de que algumas pessoas mais jovens saibam que havia prisões-sequestros durante o regime militar. Espero que isso se oponha, como realidade vivida, aos mitos de volta a uma ordem supostamente invejável que teria vigorado entre 64 e 85. Tudo o que aconteceu conosco foi caótico. Fomos presos sem mandado, sem explicação, ficamos mais de um mês sem sequer um interrogatório. Quando este veio, provei que as acusações nascidas das fake news do radialista e homem de TV Randal Juliano eram falsas, o major me prometeu que seria solto em dois dias – e teve que me manter preso, sem saber por que, por mais de uma quinzena. Depois disso, fomos levados para Salvador e o coronel Luiz Artur, que chefiava a PF na Bahia, reclamou que não havia documentos, papéis com processos, nem interrogatórios. Ainda ficamos quatro meses confinados em Salvador e depois, como se fosse uma solução para a nossa impossibilidade de trabalhar aqui, eles nos mandaram para o exterior. As pessoas que veem grupos pedindo a volta do AI-5 em Brasília precisam saber o caos e a insegurança que aquilo gerou.
Pois é. Escrevi fake news acima, referindo-me às acusações feitas por Randal Juliano e ouvidas no rádio por militares em Agulhas Negras. Eram falsas, o jornalista nunca as foi conferir, bradava talvez sabendo que não eram verdadeiras, e, quando foi chamado pelo major Hilton, que me interrogava, este ouviu de seus superiores que Randal não viria para ser acareado comigo. As testemunhas que eu indiquei, sim, fizeram a acareação e eu provei que estava dizendo a verdade. Nem assim me deram a liberdade.
Acho que no país da desigualdade é a desigualdade que deve ser o alvo prioritário. O que não quer dizer que as questões do machismo e do racismo devam ser deixadas de lado. O que se vê é que essas instâncias estão todas imbricadas no sistema de opressão.
Eu me impressionei muito com O Estrangeiro. Meursault me comovia. Mas identificação mesmo senti com o detalhe do jornal velho na cela dele, e também havia um na minha. Claro que a sensação de estranheza em tudo me punha perto de Meursault. Estrangeiro no único mundo que conhecia. Quanto ao filme de Visconti, não vi. Gosto imensamente de Visconti. Rocco e Seus Irmãos é um dos meus filmes favoritos de sempre. E adoro o Gattopardo e o penúltimo filme dele, também com Burt Lancaster (Violência e Paixão). E Senso, assim como Belíssima e As Noites Brancas. Mas não gostei do Morte em Veneza que ele fez, com Dirk Bogarde que já entra sambado e aquele menino cheio de condicionador no cabelo. O Estrangeiro, não vi.
Nunca deixei de gostar de cinema. Os filmes americanos ficaram longos demais e parecem um hambúrguer muito alto que não cabe na boca, um milk-shake muito grosso que não sobe no canudo. E os filmes europeus ou asiáticos ou latino-americanos só passam em cinemas especiais, com horários restritos. Eu gostaria de fazer cinema. Mas O Cinema Falado foi apenas um ensaio de ensaios. Queria fazer um filme na Bahia, com um personagem inspirado numa pessoa real, um preto de nome Marco Polo, que andava a cidade toda de barco. Ele nem sabia que o nome dele estava ligado a Veneza. Teria muitas imagens de Salvador vista do mar – e abordada pelo mar –, como num filme chamado Trampolim do Forte, que me fascina.
Que faça jus à data. É um 7 de Setembro. Que pelo menos haja um grito de independência, e isso mesmo que as lutas só tenham se dado na Bahia em julho do ano seguinte.
O Brasil vai salvar o mundo. Essa é sua missão. Pode ser que ele não a cumpra, mas é a missão dele, a nossa. Creio mais nisso do que em muita teoria de aparência sensata e muita maluquice em forma de teorias de conspiração.
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