Releitura de 'Berlin Alexanderplatz' atualiza a marginalização dos imigrantes

Livro de Alfred Döblin deu origem a um filme clássico de mais de 13 horas de Fassbinder e agora ganha contornos contemporâneos

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Por Luiz Zanin Oricchio
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A atual versão de Berlin Alexanderplatz é (também) a história de uma obra literária e suas versões. O romance, escrito e publicado na Alemanha em 1929 por Alfred Döblin, ganhou a primeira adaptação para o cinema logo em 1931, por Phil Jutzi. A mais famosa é a de Rainer Werner Fassbinder, de 1980, um painel gigantesco de 13 horas e 30 minutos de duração, tida por muitos críticos como a obra-prima do cineasta alemão.

Francis é interpretado por Welket Bungué, ator de Guiné-Bissau que participou do elenco do longa brasileiro 'Tiradentes' Foto: Sommergaus Filmproduktion

O romance, oceânico, polifônico e desesperado, surge num quadro histórico de transe da Alemanha. Derrotada na Primeira Guerra Mundial, pagando reparações extorsivas aos vencedores, assolada pela inflação e pela crise econômica degenerada, mergulha, de forma progressiva, na anomia social. Em meio ao caos, o foco do romance (e dos filmes) é posto sobre a arraia miúda, o chamado lúmpen proletariado, que vive da mão para a boca e sobrevive de expedientes, muitas vezes pouco legais. O anti-herói é um desses seres à margem, chamado Franz Biberkopf e interpretado, no filme de Fassbinder, por um magnífico Gunther Lamprecht.  Tudo mudou. A Alemanha perdeu mais uma guerra, reergueu-se e agora lidera a Europa unificada pela força da economia e não pelas armas. Enfrentou, sob Angela Merkel, melhor que os outros países, um dos grandes desafios da União Europeia, a imigração, o fluxo de desesperados do mundo todo, mas, sobretudo, da África, que tenta chegar à próspera Europa em busca de melhores condições de vida. Ou de simples sobrevivência, no caso de países devastados por guerras, pela fome ou por governos ditatoriais e corruptos.  Dessa forma, o personagem principal não é mais um desvalido alemão como Franz Biberkopf, mas um imigrante negro, de origem africana e de nome Francis. Foi a maneira de o cineasta alemão de origem afegã Burhan Qurbani dar atualidade ao drama permanente da marginalidade descrito pela pena genial de Döblin em 1929.  Francis é interpretado por Welket Bungué, originário da Guiné-Bissau. Ele é conhecido do espectador brasileiro. Faz parte do elenco de Joaquim, filme do pernambucano Marcelo Gomes sobre Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira.  Bungué transmite muita força ao personagem. Tem presença e carisma para interpretar esse refugiado que chegou à Alemanha depois de uma fuga de seu país e de um naufrágio no Mediterrâneo ao qual sobreviveu. Ele agora, como seu antecessor Biberkopf, tenta apenas sobreviver de maneira decente. Como ser humano, alguém que ganha a vida com seu trabalho. Mas, também como seu precedente, ele terá seus percalços e será tentado pela vida criminal.  Encurralado pelas dificuldades, que se somam ao preconceito racial de que é vítima, encontra o que julga ser um atalho através de Reinhold (Albrecht Schuch), que o apresenta à criminalidade. Ao crime, essa “faceta marginal do esforço humano”, como definiu um personagem (de Louis Calhern) no clássico noir O Segredo da Joias, de John Huston. Reinhold não é apenas alguém que desvia Francis do bom caminho. Essa seria uma leitura bastante simplória do drama. É antes uma figura mefistofélica, tão presente na cultura alemã, em especial através das obras de Goethe e Thomas Mann, e levada várias vezes para o cinema, de Murnau a Sokurov. Celebra o mito de Fausto, no qual o personagem vende a alma ao Diabo em troca do paraíso terreno. Assim é com Francis e Reinhold, com o Deus contemporâneo - o dinheiro - funcionando como o prêmio supremo com o qual a figura maléfica tenta o homem fraco.  O centro gravitacional do filme repousa sobre essa relação complexa entre Francis e Reinhold. Relacionamento bastante ambivalente, do qual a tensão sexual não está ausente. Mas os motivos do empenho de um em destruir o outro permanecem envoltos em mistério. Entende-se melhor Reinhold se pensarmos nele não como uma pessoa simplesmente má, mas como símbolo de toda uma estrutura empenhada em destruir determinado tipo de indivíduo - o imigrante Francis, no caso.  O retrato do submundo de Berlim, com suas prostitutas, cafetões, pequenos e grandes bandidos, perdedores e aproveitadores, todos metidos numa competição insana pela sobrevivência, fornece um retrato bastante vivo - e indigesto - do funcionamento subterrâneo da sociedade. E esse é o grande mérito do filme: expor contradições, sem ceder a simplismos ou a facilidades maniqueístas.  Berlin Alexanderplatz de Alfred Döblin foi concebido como antena para a monstruosidade subterrânea que crescia sob a superfície num período de desagregação social.  Sob essa inspiração, foram feitos também os filmes que adaptaram o livro, em épocas diversas. A nova versão apanha um novo momento da humanidade, não menos grave, problemático e sem esperança que os anteriores. Ao ver este novo Berlin Alexanderplatz nos perguntamos, inquietos, que novo ovo da serpente estaria sendo chocado em nosso tempo. Aliás, já podemos formar uma boa ideia a respeito. 

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