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"Reis e Rainha" nasceu como dois em um

O filme, que tem Catherine Deneuve no elenco, conta a história de dois casais. Temos Ismael e Nora, interpretados por Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos

Por Agencia Estado
Atualização:

Na fase de escrever o roteiro, Arnaud Desplechin atribui grande importância aos nomes dos personagens, mesmo que, eventualmente, os troque mais tarde, durante a filmagem. Mesmo assim, ele admite que, às vezes, se surpreende com a interpretação dos críticos. O principal personagem masculino de seu novo filme, Reis e Rainha, que estréia hoje, se chama Ismael. O garoto da história é Elias. São nomes míticos e/ou bíblicos. Ismael é o narrador de Moby Dick, de Herman Melville, obra-prima blasfema na qual a grande baleia branca representa Deus. Elias é o eleito. Até aí, tudo bem. A surpresa, para o próprio Desplechin, foi proporcionada pelo nome de sua rainha - Nora, personagem interpretada pela atriz-fetiche do autor, Emmanuelle Devos. Um crítico francês escreveu que ela só podia se chamar Nora, para conter ?ouro? (or, em francês) no nome, como convém a uma rainha. Já os críticos americanos fizeram a associação com as invenções de linguagem de James Joyce, cuja mulher se chamava Nora. Há onze anos, quando A Sentinela estreou no Brasil, o repórter fez uma entrevista com Desplechin que foi publicada pelo jornal com o título ?O autor que faz a cabeça dos críticos?. Mais de uma década depois, ele continua sendo o preferido da crítica. Cahiers du Cinéma colocou Reis e Rainha nos cornos da Lua e o filme ficou grudado com O Mundo, de Jia Zhang-Qe, como o melhor da recente Mostra BR de Cinema, só no último momento ocorrendo o desempate em favor da produção chinesa, na votação dos críticos. Numa entrevista por telefone, de Paris, Desplechin acha graça quando o repórter lê um trecho da entrevista anterior - ?O filme é percorrido pela interrogação que me obceca - qual é o preço a pagar, quando se vive junto? Quando morre alguém na família, a dor e a lembrança unem os sobreviventes, mas a lembrança é sempre individual. Cada um tem a sua. Quando as lembranças diferem, aumenta o fosso que leva à separação.? Ele falava de A Sentinela, mas o que diz se aplica a Reis e Rainha. ?Que coisa! A gente tenta ser original, mas não consegue escapar à repetição?, ele observa, rindo. Na verdade, os temas podem continuar os mesmos (e até obsessivos), mas a originalidade está na forma como eles são renovados e é aí Desplechin se afirma, mais uma vez, como um dos grandes talentos (o maior?) de sua geração no cinema francês. Reis e Rainha conta a história de um casal. Ismael e Nora estão separados, mas é a ele que ela recorre quando seu pai morre. Uma mistura entre o cômico e o dramático Desplechin conta a gênese do filme. ?Ele nasceu como dois em um - o filme de Nora e o de Ismael.? Ele admite que sente a nostalgia do cinema americano de gêneros. ?Pertence à história. Hoje, misturam-se os gêneros e os estilos. As tramas estão cada vez mais impuras.? No caso de Reis e Rainha, de Ismael e Nora, ele queria misturar o cômico e o dramático. ?A história de Nora, que dura 1h10, é triste e eu queria que fosse muito triste, à maneira de um grande melodrama. A de Ismael, que dura os 29 minutos restantes, é burlesca e eu queria que fosse muito alegre.? Não é arriscado trabalhar sobre o equilíbrio de elementos tão diversos? ?Sem dúvida, mas foi o que mais me estimulou em Reis e Rainha.? O título vem de um poema de Michel Leyris, autor que serviu como bússola para Desplechin. O poema refere-se a reis de muitas rainhas e a uma rainha sem reis. ?Como ocorre muitas vezes na música, o título foi sendo concentrado até atingir a fórmula atual.? Uma mulher abalada pela morte do pai e que quer um filho (e Elias, o eleito, é adotivo). Nora quer que Ismael seja o pai da criança. Ele diz ao menino - ?Não serei seu pai, mas um amigo para sempre.? Tudo obedece a uma lógica poética - a ausência de simetria dos personagens, as implicações lingüísticas dos diálogos e dos nomes. ?Não se pode esquecer que Nora é o nome da heroína pré-feminista de A Casa de Bonecas, de Ibsen?, ele lembra. Um filme muito triste e outro muito alegre. E ambos os personagens, cada um em seu filme, têm a sua grande cena. ?Nora lê a carta do pai; Ismael conta seu sonho à psiquiatra.? Tudo é muito racionalmente construído. ?Sou francês?, Desplechin se autodefine (desculpa-se?) Nada é deixado ao acaso, mas a última palavra quem tem é o público. Ele lamenta que exista esse divórcio entre filmes de arte (de autor) e comerciais. Diz que essa dicotomia é uma coisa de latinos. ?Não existe para os ingleses nem para os americanos.? É curioso, mas o queridinho da crítica francesa (e mundial) considera Emmanuel Finkiel (do deslumbrante Viagens) o maior diretor da França. E o afirma com a mesma ênfase com que manifesta sua admiração por M. Night Shyamalan. ?O cinema americano de estúdio é muito mais rico do que a média da produção independente, embora existam filmes muito bons nessa última, como Diários de Motocicleta(de Walter Salles), que me parece fordiano e encantador.? Ele ama Corpo Fechado, de Shyamalan. Surpreende ao saber que o filme foi tratado a pontapés pela crítica brasileira. ?É um grande filme político, mais do que os de Michael Moore. Quem quiser saber sobre os conflitos raciais na América do terceiro milênio precisa se reportar a esse filme extraordinário, que revela, mais do que qualquer outro, a fissura da sociedade americana.? Entusiasma-se ao saber que o repórter já assistiu a King Kong. ?O de Peter Jackson?? Quer saber tudo sobre o filme. Há esse momento de tristeza absoluta, quando o olhar de Kong se perde no horizonte e a mulher (Naomi Watts) descobre sua vulnerabilidade, vindo consolá-lo, encaixando-se na palma de sua mão. Mais do que uma tragédia sexual, a do novo King Kong é uma tragédia amorosa da solidão. ?O filme antigo, dos anos 1930, é um dos melhores já feitos?, ele diz. Lembra que o surrealista André Bréton era fissurado pelo rei Kong. Desplechin interessa-se por esse tipo de cinema como pelo de autor. Reserva um elogio especial para Catherine Deneuve, que faz a psiquiatra. ?O filme conta a história de dois casais. Temos Ismael e Nora, interpretados por Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos. E temos a psiquiatra e o menino. Queria contrapor o rosto mais conhecido do cinema francês (o de Catherine) ao menos conhecido (o do garoto). Havia conhecido ligeiramente Catherine e ela tinha problemas de agenda, mas compreendeu a minha necessidade e se dispôs a fazer o papel. Precisava do pathos de sua persona na tela, sem o qual o filme talvez não funcionasse.?

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