PUBLICIDADE

Reestréia um Almodóvar subversivo

Maus Hábitos, que reestréia em SP, é um dos filmes em que Almodóvar despejou sua verve subversiva e anticlerical, maneiras que o cineasta abandonou em suas histórias recentes

Por Agencia Estado
Atualização:

A reestréia de Maus Hábitos permite boa comparação entre o Pedro Almodóvar de 20 anos atrás, e o mais sereno e maduro de agora. O cineasta que tem encantado a todos com Fale com Ela aprendeu a filmar com elegância e emoção. Mas há quem sinta falta daquele demolidor anárquico do começo dos anos 80. Pois bem, essa sátira anticlerical impiedosa de 1984 serve para matar as saudades. Nessa comédia meio louca temos uma cantora de cabaré perseguida, que busca esconderijo seguro em um mosteiro. Lá encontra um mundo mais alucinado do que aquele que deixou. Uma das monjas escreve contos pornográficos. Outra é adicta de drogas pesadas. Uma terceira é adepta do sadomasoquismo. Enfim, uma fauna. Seus nomes bastam para defini-las: Pecado, Esterco, Víbora. E assim por diante. Tudo isso não parece muito óbvio? E é mesmo. Uma coisa é o anticlericalismo inteligente. Outra, a grosseria sem muito propósito e, no fundo, ineficaz. No entanto, essa posição com relação à Igreja é um traço histórico do cinema espanhol, em especial na tradição de Luis Buñuel. Dom Luis começou como demolidor. Seus dois primeiros filmes, Um Cão Andaluz e A Idade de Ouro são verdadeiras vergastadas surrealistas na Igreja. Mas em nada se comparam ao anticlericalismo esclarecido de Viridiana e Nazarín - estes sim corrosivos de verdade. Em Viridiana, Buñuel se ocupa em dinamitar a noção cristã da caridade. Em Nazarín, acompanha as desditas de um padre disposto a viver vida santa como a de Nosso Senhor. Ou seja, Buñuel aprendeu, com a experiência, que pequenas doses de explosivo, colocados em lugar certo, podem ser mais eficazes que explosões aleatórias. Tudo isso para dizer que Almodóvar fez percurso semelhante. A sua é uma geração que virou adulta no fim do franquismo. Depois de 40 anos de ditadura fascista, a Espanha livrou-se do regime de Franco e sua libertação se deu sob a forma da euforia. Da democracia à "movida" madrileña, todo mundo se fartou. O manchego Almodóvar era uma das figuras carimbadas dessa festa permanente em que se transformou a noite de Madri com a redemocratização política e a nova liberdade dos costumes. A tendência, natural, era se voltar contra as antigas formas de opressão. Denunciar seus malefícios, castigar os antigos donos do poder, ironizá-los, exorcizar velhos fantasmas. A Igreja entrava no jogo por conta de suas ligações íntimas com o regime de Francisco Franco. Com o tempo, o ímpeto inicial foi passando. As pessoas se acostumam com a liberdade e não precisam apregoar o tempo todo que são livres. Além do mais, Almodóvar ia amadurecendo com artista. Foi arredondando seu estilo até se projetar no cenário internacional com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Tornou-se então famoso, uma instituição, o mais importante diretor de seu país depois de Luis Buñuel que, aliás, foi obrigado, pelas circunstâncias políticas, a fazer carreira no exterior - parte na França, parte no México. Almodóvar não. Trabalhou e trabalha na Espanha. E lá mesmo sofre outro tipo de restrição, este por parte da intelligentsia, que entende ser a representação que ele faz da cultura espanhola muito estereotipada. Mas, enfim, depois da fama de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Almodóvar fez os subversivos Ata-me, A Lei do Desejo, Matador, entre outros. Um punhado de filmes que analisam, com rara acuidade, a natureza da pulsão sexual humana, no que ela tem de mais forte e irredutível à ordem e à normalidade. Criou um estilo próprio, uma forma de narrar que se foi depurando, e também um arsenal de conceitos que lhe permite compreender melhor a vida e as relações humanas. De tal forma que um crítico espanhol, ao comentar o lançamento de Fale com Ela, disse que Pedro Almodóvar parece conhecer alguma coisa da sexualidade que vai além da compreensão média dos homens. Parece mesmo. E a vantagem é que juntou ternura à antiga veia subversiva. Esta, ele expressou em filmes como Maus Hábitos. A ternura veio com o tempo. Juntas, formam uma obra compacta e sem paralelo no cinema contemporâneo. Maus Hábitos (Entre Tinieblas) - Comédia. Direção de Pedro Almodóvar. Esp/84. Duração: 107 minutos.14 anos

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.