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Rádio Favela vai às telas do cinema

Uma Onda no Ar, novo filme que Helvécio Ratton roda na capital mineira, baseia-se no exemplo da Rádio Favela de Belo Horizonte, fundada por um grupo de 50 amigos, há 20 anos, no meio de 11 favelas encravado na zona sul de BH

Por Agencia Estado
Atualização:

Há um Brasil dos excluídos que tenta, desesperadamente, inserir-se na ordem social. O indicado para o Prêmio Multicultural 2001 Estadão Cultura, João Moreira Salles, fez deste o tema de seu admirável documentário sobre os evangélicos, na série Seis Histórias Brasileiras. Salles queria saber por que os que têm tão pouco concordam em dar o mínimo que têm para as igrejas evangélicas. Descobriu que eles dão porque ganham em troca o que não têm: ordem, a sensação de pertencer a um tecido social que, no fundo, os exclui, tratando-os como cancros. Tudo isso encontram justamente nos evangélicos. Esse mesmo Brasil dos deserdados invadiu duas vezes o set de filmagem de Uma Onda no Ar, o novo filme que Helvécio Ratton roda na capital mineira. Foi num sábado à tarde. Ratton rodava no Viaduto Santa Teresa, no centro de Belo Horizonte. Esse viaduto não é apenas um marco geográfico na cidade. Nele se penduravam os poetas modernistas, Carlos Drummond de Andrade à frente. Por que o faziam? Para brincar, ousar contestar. No filme de Ratton, o personagem Brau, interpretado por Benjamin Abras, caminha sobre as extremidades do viaduto, equilibra-se no vazio para impressionar uma garota. Para filmar essa cena tão importante de Uma Onda no Ar, Ratton instalou sua equipe em uma das pistas do viaduto. E, para garantir a qualidade do som, as duas pistas eram interditadas e o trânsito interrompido durante a rodagem. Havia muitos populares assistindo à cena. Um deles chamava a atenção, um morador de rua. Quando era para interromper o trânsito, corria aflito para ver se estava tudo OK como se realmente pertencesse àquela equipe. Houve um momento da rodagem em que um carro avançou o sinal. Ia estragar a cena. Desesperado, Paulão - esse o seu nome, sem sobrenome - saiu correndo para impedir que o carro, avançando, fizesse barulho. Por que você fez isso, Paulão? "Porque ia estragar o trabalho, tão bonito; não era justo." Não é justo esse País de excluídos que vivem debaixo de pontes, de marquises. Desempregados, subalimentados, ofendidos na sua dignidade de homens e mulheres. Esse Brasil invadiu duplamente o set de Uma Onda no Ar. Ratton poderia ter incorporado Paulão ao seu filme, Paulão que estava tão nervoso, que queria tanto se integrar à animada equipe de Uma Onda no Ar. Há muitos Paulões no novo trabalho do diretor de Menino Maluquinho e Amor & Cia. Uma Onda no Ar baseia-se no exemplo da Rádio Favela de Belo Horizonte, fundada por um grupo de 50 amigos, há 20 anos. Localizada bem no meio do Aglomerado da Serra, um conjunto de 11 favelas encravado na zona sul de Belo Horizonte, a Rádio Favela ganhou reconhecimento em todo o mundo pelo trabalho social que desenvolve nas áreas pobres da capital mineira. Foi premiada duas vezes pela ONU, por suas campanhas contra as drogas. Nascido e criado no morro, Misael Avelino dos Santos é o diretor de programação da rádio. Ele aparece no filme de Ratton, mas seu papel é interpretado por Alexandre Moreno, que faz o personagem Jorge. É um dos quatro amigos que unem esforços para realizar seu sonho. Quatro moradores da favela, todos jovens, negros e conhecendo todo tipo de marginalização e preconceito. Os outros são Brau (Benjamin Abras), Roque (Babu Santana) e Zequiel (Adolfo Moura). Roque, do grupo, é aquele que faz o atalho para realizar seu sonho por meio da violência. Vira traficante. Consegue metade do dinheiro necessário para instalar a rádio, mas os amigos não querem esse tipo de ligação. Nem por isso deixam de ser unidos e solidários entre eles. A solidariedade não impede o desfecho trágico. Brau é o artista do grupo. Benjamin Abras é de Belo Horizonte, tem 26 anos. Foi ele quem se pendurou no alto do Viaduto Santa Teresa. Ratton escolheu os atores principais do seu filme por meio de concurso. Inscreveram-se 300 candidatos só para fazer o Brau. Abras tinha experiência de teatro de rua, de cantor. Acha que isso somou pontos. "O Brau é meio poeta, fala não só por palavras, mas por meio de gestos, com o corpo; é um personagem metafórico", diz. Ele adorou essa primeira experiência diante das câmeras cinematográficas. Espera continuar na carreira. Abras é talentoso. Sua cena no viaduto antecipa um grande potencial. Em comparação, Babu Santana é mais experiente. Integrante do grupo de teatro Nós do Morro, do Vidigal, no Rio, ele é o caçula da turma, com 21 anos. Sua experiência inclui episódios da série Malhação, na Globo. Está no filme de Ratton, no de José Henrique Fonseca adaptado do livro O Matador, de Patrícia Melo (O Homem do Ano), e em julho começa a rodar Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Apesar do currículo, não se considera mais experiente que os colegas. "Acho que todos aprendemos muito no processo de fazer este filme; Helvécio foi maravilhoso com a gente." Congada - Abras já havia contado que o grupo foi treinado por dois diretores de elenco - Rui Moreira e Gil Amâncio. Pegue-se o caso dele, Abras. Integrante do Reinado Moçambique, até o dia 13 do mês passado ele estava comprometido com o grupo de congada. No dia 14, começou a ensaiar para fazer o Brau. Terminada sua participação nas filmagens, continua no set, acompanhando o trabalho dos colegas, "aprendendo com eles", como diz. Ratton está entusiasmado com seu elenco jovem. Não que tenha ficado insatisfeito com o elenco de Amor & Cia (Marco Nanini, Patricia Pillar). O entusiasmo deles me contagiou, acho que este filme vai ser importante para mim; vou reencontrar o Brasil real e as minhas origens de documentarista, mais comprometido com a urgência da realidade." Uma Onda no Ar é uma produção de baixo orçamento da Quimera Filmes. Ratton está no teto de R$ 1 milhão para colocar o filme na lata (a filmagem termina no dia 30). Precisa captar para a pós-produção. É difícil. "Não são muitas as empresas que querem ligar seu nome a um filme que trata de racismo, drogas, o papel do negro na sociedade mineira e brasileira, as rádios piratas." Ele pede, por isso, que sejam incluídos os nomes de seus parceiros. São dez: Usiminas, BNDES, Correios, Banco Rural, Telemar, prefeitura de Belo Horizonte - Belotur, Cemig, Brasif Duty Free, Localiza e MR do Brasil. Cada um deu um pouquinho. Ainda falta, mas se depender do entusiasmo do diretor e da equipe vale investir. Uma Onda no Ar está sendo feito com profissionalismo, sim, mas principalmente com amor e muita dedicação.

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