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Questão de tempo

O assassinato no chuveiro de ‘Psicose’ é um marco do gênio de Hitchcock, que fez arte de literatura barata

Por Luiz Carlos Merten - O Estado de S. Paulo
Atualização:

E se a sequência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin, de Sergei M. Eisenstein, não for a mais influente do cinema, como tem sido relatado há tanto tempo? O próprio filme de Eisenstein durante décadas alternou com Cidadão Kane, de Orson Welles, o título de melhor de todos os tempos. Ora era um, ora outro. Pois uma votação em 2012 instituiu um novo campeão, e foi Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock, que você pode (re)ver nos cinemas da cidade. Decorridos 34 anos de sua morte - em 1980 -, o legado de Hitchcock nunca esteve mais vivo. Publicam-se novos livros sobre o mestre do suspense, mais do que sobre qualquer outro diretor. E os seus filmes renascem, a toda hora, agora em Blu-Ray.

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A Universal lançou uma edição limitada. Chama-se Alfred Hitchcock - A Obra-Prima e contém 14 filmes, incluindo alguns dos maiores. Psicose, Os Pássaros, Janela Indiscreta, mais 15 horas de extras. Tudo o que você queria saber está resumido numa frase de Guillermo Del Toro: "A genialidade de Hitchcock não mudou só o cinema. Mudou nossa forma de ver o mundo". A Universal também lançou edições comemorativas de Psicose e Os Pássaros. Incluem pôsteres de tecido e cards dos filmes. E os extras são preciosos.

Bastidores de Psicose - o célebre diálogo entre Hitchcock e seu tiete, o crítico e cineasta François Truffaut; os comentários de Stephen Rebello, autor de Alfred Hitchcock e a Realização de Psicose (que virou filme), o legado do mestre e, claro, a cena do assassinato no chuveiro. E se for ela a mais influente de todos os tempos?

Se estivesse vivo, o historiador Eric Hobsbawm provavelmente protestaria, pois ele usou todo seu prestígio de historiador para sentenciar que os sete minutos da escadaria de Odessa influenciaram os diretores mais que qualquer outro momento em filmes. Ninguém é louco de discutir o legado de Eisenstein. A montagem de atrações da escadaria virou o bê-á-bá dos cinejornais e reportagens televisivas. Woody Allen e Brian De Palma parodiaram, cada um à sua forma, a cena famosa em Bananas e Os Intocáveis e até Glauber Rocha, em Deus e o Diabo, fez da escadaria de Monte Santo a sua Odessa. Mas as mais de 70 posições de câmera para apenas 45 segundos de filme - o assassinato de Marion Crane - têm sido ainda mais imitados. Do chuveiro macabro de Hitchcock em Psicose saíram a MTV, os videoclipes e todo - todo! - o cinema de De Palma.

Mas existe o fator ideológico. Potemkin foi uma obra de propaganda criada em 1925 para dar pompa e circunstância aos 20 anos dos levantes em Odessa, que pavimentaram, na Rússia do começo do século 19, a via revolucionária que levou à revolução de 1917. O grande crítico Walter da Silveira chegava a dizer que, independentemente de nosso sentimento pela Revolução Russa, ela foi uma data na história da humanidade, e do cinema. Inspirou Eisenstein, cuja obra é toda (ou quase) uma reflexão sobre a tomada do poder pelos trabalhadores na Rússia czarista. A Revolução Russa gerou em seu ventre o stalinismo, a guerra fria, o mundo à beira do holocausto nuclear por décadas; o muro que sustentava o império soviético ruiu em 1989.

Comparativamente, Psicose, que Hitchcock adaptou de um ‘pulp’ de Robert Bloch, é muito menos nobre. Literatura barata, que ele transformou em grande cinema, incorporando a linguagem de TV que exercitara na série Alfred Hitchcock Presents. Vamos rememorar - como se fosse preciso (o cinéfilo sabe). Janet Leigh, como Marion Crane, trabalha num banco. Tem um amante, com quem se encontra na hora do almoço. Decidida a criar um futuro para os dois, ela rouba o caixa e foge. Vaga na noite, de carro, sob a chuva. Chega ao motel de Norman Bates (Anthony Perkins). Conversa com o jovem estranho, que empalha aves. É uma conversa atravessada. Coisas que não são ditas ficam subentendidas. Marion conscientiza-se do que fez e resolve voltar, arcando com as consequências de seu gesto impulsivo. Ela diz a Norman que vai dormir, porque amanhã terá um longo dia. Mas antes resolve tomar um banho - purificador?

A cena do chuveiro é antológica. Começa com a tomada da água sendo jorrada do aparelho. Marion parece nua, mas, na verdade, o que nos é dado a ver mais sugere do que mostra as coisas, uma lição de Lev Kulechov, que antecipou Eisenstein. E então, o ângulo muda e, através da cortina do box, o espectador vê que alguém entrou no banheiro. A cortina abre-se inesperadamente. Um vulto, uma faca. Marion é esfaqueada até a morte. Uma cena de tragédia. Não haverá retorno à casa nem segunda chance para ela. Hitchcock pediu a Saul Bass que fizesse o planejamento visual da cena. Até hoje, 54 anos depois, discute-se o aporte de Bass. Hitchcock queria a cena sem som. Foi sua mulher Alma Reville quem o convenceu a usar a música. Rebello sustenta que o aporte de Alma foi muito maior. Sugere que ela foi coautora. O tempo passa e os mistérios de Psicose somente mitificam ainda mais o filme de 1960.

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Câmera de TV: Hitchcock utilizou-se de câmeras de TV para realçar o aspecto ‘cheap’ de Psicose. E ele fez absoluta questão de filmar em preto e branco, para evitar a vulgaridade que o excesso de sangue poderia imprimir à cena do chuveiro. Hitch não queria sangue, mas utilizou o filete que escorre até o ralo e se funde com o olho de Marion, num efeito perturbador.

Diálogo: Na cena em que Martin Balsam sobe a escada, o diálogo distrai o espectador que segue o movimento de câmera. Mas cuidado com aquela porta. Mais assustadora só a cena da adega, que inspirou Kubrick, O Iluminado.

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