Publicação levanta debate sobre Sartre e o cinema

Apesar da paixão e das tentativas de ser também `homem de cinema´, o filósofo do existencialismo só colheu fracassos nas suas relações com a arte cinematográfica, por Napoleão Saboia

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Por Agencia Estado
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A publicação recente pela revista Les Temps Modernes do roteiro inédito de Jean-Paul Sartre, escrito em 1943 e 1944, e intitulado Résistance, reativou o interesse dos meios artísticos e literários franceses pelas relações e afinidades do escritor com o mundo do cinema. Todavia, do balanço que os estudiosos fazem de tal relacionamento, a conclusão é meio melancólica, visto o espaço por ele conquistado nos domínios da filosofia, da literatura e do teatro. Cinéfilo precoce e apaixonado, como o confirmam certas passagens de seu best seller As Palavras (1964), Sartre não acertou, entretanto, em nenhuma de suas tentativas de abordagem da sétima arte. De seus quatro a cinco roteiros conhecidos até agora (incluindo Résistance), um único, Les jeux sont faits, filmado por Jean Delannoy em 1947, registrou rotundo fracasso. Escaldado, ele abandonaria posteriormente os projetos de filmes que havia acertado com diretores famosos, como, por exemplo, John Huston, para quem deveria escrever (em 1962) um roteiro sobre Freud. O que ficou de mais consistente de Sartre na área cinematográfica foram suas intuições e análises prospectivas sobre "a essência do cinema" ( em particular de seu caráter coletivo e democrático) e sobre a modernidade estética e moral do neo-realismo. Disso, a referência maior é o texto que o filósofo escreveu (sem assinatura) em 1944, sob o título Um filme para o pós-guerra, na revista Lettres Françaises, ligada ao Partido Comunista e que circulava clandestinamente. Na realidade, os pressupostos de sua visão anunciadora, na França, de uma nova estética cinematográfica, já tinham sido por ele próprio delineados desde 1939, ao desancar, em artigo publicado pela Nouvelle Revue Française, as concepções clássicas do escritor François Mauriac em matéria de cinema. Bem mais tarde, em 1954, nessa mesma linha, ele iria respaldar François Truffaut que, então crítico dos Cahiers du Cinéma, se insurgiu contra os velhos clichês sobre a qualidade da cinematografia francesa, considerando-a eivada de falsidade e desprezo. Foi, portanto, nas pegadas de Sartre que André Bazin escreveu, em fevereiro de 1955, nos Cahiers du Cinéma, o agora célebre artigo em defesa dos "jovens cabeças de turco" como Truffaut, que iriam sacudir as tradições e conformismos reinantes, inclusive na revista, e ensejar a eclosão da Nouvelle Vague. André Bazin buscou nos escritos do "papa do existencialismo" os fundamentos para ampliar a contestação, iniciada pelo filósofo em 1939, da ordem estética vigente no cinema francês, assinalando, notadamente, que "o que Sartre escrevia sobre o romance era válido para todos as artes, tanto para o cinema quanto para a pintura". Mas, segundo os estudiosos, o paradoxo é que essa lucidez e descortino de Sartre, associado ao seu engajamento fervoroso nas coisas do cinema (ao ponto de ele projetar, em 1943, o abandono do magistério para se consagrar à profissão de roteirista da companhia Pathé), nunca lhe propiciou bons resultados no campo concreto da filmografia. Sem dúvida, objetam os setores menos entusiastas de Sartre na intelligentsia francesa, ele pôs em perspectiva idéias que iriam frutificar no cinema do pós-guerra, porém, ao mesmo tempo, cometeu erros clamorosos de avaliação. Primeiro, não compreendeu o alcance e a importância da passagem do cinema mudo para o falado e reclamava, pois, o direito de "o cinema permanecer calado". Depois, errou nos juízos que formulou sobre as obras de vários cineastas, em particular sobre Orson Welles, por ele considerado "demasiado intelectual". Chegou mesmo a proclamar que Cidadão Kane, a obra-prima de Welles, "não era um exemplo a ser seguido". Em suma, os especialistas das diversas correntes de pensamento tendem a admitir hoje que, talvez, os fracassos reiterados de Sartre no campo do cinema estejam ligados ao caráter coletivo da sétima arte. Caráter que o filósofo reconheceu e enalteceu em entusiasmados torneios retóricos e metafóricos, mas ao qual, por uma reação inelutável de sua natureza profunda, não pôde aderir ou se converter. Visto suas opções ideologicas, tal "resistência" encerra aquela dimensão de ironia e de paradoxo que atravessou seus engajamentos literários, filosóficos e políticos.

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