Premiação causa descontentamento

Diretor finlandês encena quase-protesto por não ter recebido a Palma de Ouro e a imprensa francesa sugere que o júri fez "média"

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Por Agencia Estado
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A imprensa francesa especulava hoje sobre o que Aki Kaurismaki pode ter dito ao presidente do júri, o cineasta David Lynch. Chamado a receber o grande prêmio dos jurados por seu filme O Homem sem Passado, Kaurismaki subiu contrariado ao palco do Grand Théâtre Lumière, disse alguma coisa ao ouvido de Lynch, agradeceu a si mesmo e ao júri e desceu do pódio tão rapidamente que tudo isso não durou 15 segundos. Kaurismaki de certa forma repetiu Theo Angelopoulos. O diretor grego também foi chamado ao palco para receber, anos atrás, o prêmio que ganhou por O Olhar de Cada Dia. Disse que havia preparado um discurso para a Palma de Ouro. Como não era a palma, catou o diploma das mãos do apresentador, disse um merci (obrigado) quase imperceptível e deu as costas ao cerimonial de Cannes. Kaurismaki fez quase a mesma coisa. Com sua contrariedade, deixou evidente que esperava a Palma de Ouro, nada menos. Muitos críticos e jornalistas também apostavam que ele ganharia. Nos quadros de cotações do festival, O Homem sem Passado era sempre o filme mais estrelado. Enfim, você vai poder comparar se o júri errou ainda este ano. O Pianista tem distribuição assegurada no Brasil e O Homem sem Passado vai para a Mostra Internacional de Cinema São Paulo. O organizador do evento, Leon Cakoff, acrescenta a essa outra informação importante: assim como no ano passado o rock cigano de Emir Kusturica abriu a mostra, em outubro quem desembarca em São Paulo é a banda que Kaurismaki mostrou em seu filme que fez sucesso na mostra, anos atrás. Os exóticos Caubóis de Leningrado, com seus topetes e os tamancos inconfundíveis, vão fazer duas apresentações na cidade. Foi sem muito entusiasmo que a mídia francesa reagiu ao prêmio de Lynch. Talvez por saber que a escolha do júri por ele presidido iria despertar polêmica, o autor de Twin Peaks leu uma pequena declaração antes da entrega dos prêmios. Disse que o júri inteiro estava muito satisfeito pelas escolhas que fizera. Do júri participavam Sharon Stone e Walter Salles, entre outros. O diretor brasileiro, rico, bonito e talentoso, faz o maior sucesso de mídia aqui na Europa. Suas entradas no palais eram dignas daquilo que as francesas chamam de "prince charmant", o príncipe encantado. Sua companhia mais freqüente foi Juliette Binoche, linda como sempre (apesar de uma franjinha que não a favorece). Quanto a Sharon, encarnou, com raro brilho, o papel da estrela hollywoodiana a iluminar o céu da Croisette. Sharon madrugava para ver os filmes na primeira sessão da manhã, com os jornalistas, às 8h30. Aplaudiu vários filmes, chorou em outros. Por trás dos óculos escuros, ficou o tempo todo secando as lágrimas durante os créditos finais de O Pianista. O jornal Nice Matin estampou a manchete "Molto moderato", recorrendo a uma metáfora musical, adequada para um filme que se chama O Pianista para expressar seu desapontamento. Le Figaro disse que a Palma de David Lynch careceu de rigor: o júri quis contentar a todos. Libération foi pelo mesmo caminho: definiu a palma deste ano como "consensual". Quem tenta agradar a todos corre o risco de não agradar a ninguém. Também pegou mal o fato de Polanski ter chamado ao palco os produtores de O Pianista (um deles, o francês Alain Sarde). Foi considerado muito hollywoodiano. Pouca gente duvida, aliás, que o filme de Polanski participe da corrida do Oscar do ano que vem. O filme é humano, tem holocausto, é bem-feito - tudo o que Hollywood gosta. O problema é o próprio Polanski, sobre quem ainda pesa uma acusação de pedofilia que o impede de entrar nos EUA. De maneira geral, os filmes selecionados por Thiérry Frémaux apontavam numa direção: longos planos-seqüências - e o mais radical de todos foi o do filme de Alexander Sokurov, Arca Russa, narrado num só plano de 90 minutos -, temas políticos, pouca música, às vezes nenhuma (como no belo filme dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, Le Fils). Poder-se-ia acrescentar a essas características uma certa busca da sobriedade, da qual fugiram justamente os franceses: o ex-crítico Olivier Assayas, com seu Demonlover, o irresponsável Gaspard Noe, com seu Irréversible. As novas tecnologias, leia-se o digital, que permitiram a Sokurov realizar Arca Russa num só plano, também inspiraram autores como o israelense Amos Gitai e o iraniano Abbas Kiarostami. Gitai foi buscar as origens das tensões entre israelenses e palestinos em Kedma. Ele narra seu filme em cerca de 15 planos: no primeiro, a movimentação de câmera é de causar inveja ao passeio de Sokurov pelo Hermitage. Kiarostami é ainda mais radical do que Gitai, talvez mais até do que Sokurov com a impostura de Arca Russa. Kiarostami narra Ten em dez planos, daí o título. São blocos narrativos com a câmera parada em pessoas que conversam num carro em movimento. O próprio Kiarostami definiu as minimalistas dez seqüências de Ten como "o desaparecimento da mise-en-scène". Ele disse que todo o seu trabalho em Ten foi de preparação, antes da gravação com a câmera digital. Uma vez que a câmera começava a gravar, ele desaparecia enquanto diretor. E na verdade é essa a discussão que talvez tenha de ser levada, a partir de agora. Lynch e seu júri insistem em destacar que cinema mesmo é o tradicional, feito com película. Mas e o digital, que tentou arrombar as portas do Palais e foi mantido a distância na hora da premiação? O que muda com o digital? Segundo Kiarostami, é o próprio conceito que até aqui tem definido o cinema. Os grandes teóricos franceses do cinema já disseram que o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores, que no cinema "tout est dans la mise-en-scène" (tudo está na direção). O que isso quer dizer? A direção arma o plano, posiciona os atores e, pela distância da câmera em relação ao que está sendo filmado, a relação ator-cenário, tira daí uma idéia de homem no mundo. Kiarostami, o magnífico, anuncia o fim da mise-en-scène. Teóricos do cinema, correi. Talvez seja necessário repensar tudo de novo.

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